Uma das modernas discussões que se coloca é a obrigatoriedade de o Estado, através de seus planos de assistência à saúde propiciar à mulher cirurgias estéticas. A Constituição Federal garante a dignidade da pessoa humana. A natureza dota o indivíduo com suas especificidades. Nenhum é igual a outro. Todos são diferentes. Logo, cada qual tem seu corpo e viverá com ele por toda a vida.
Ocorre que, em determinadas situações, seja por força de acidente corporal, seja por não sentir bem com o corpo dado por força da natureza, o ser humano busca ficar bem consigo próprio. Por vezes e não é raro, o indivíduo não se conforma com suas orelhas, com sua boca, com outras partes de seu corpo que aparecem por sobre a roupa e busca eliminar aquela parte que lhe causa transtorno.
Na mulher, o fato é mais comum (embora não seja exceção no homem). Por vezes quer melhorar sua imagem e quer sentir-se melhor (haja vista os milhares de cirurgias de seio que são feitas anualmente). Tal circunstância permite que ela se sinta mais desejada, mas não só isso. Busca psicologicamente sentir-se melhor, porque as convenções da sociedade assim impõem. O homem, de outro lado, busca alterar seu nariz, eventualmente seu abdômen que contém muita gordura.
Isso leva ao questionamento normal: é o Estado obrigado a suportar a cirurgia plástica estética? A legislação civil proíbe a disposição do próprio corpo, quando envolver diminuição permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes (?), de acordo com o art. 13 da lei n. 10.406/2002 (Código Civil).
A cirurgia assim desejada é uma obrigação de resultado. O profissional se obriga a realizá-la de acordo com o que foi combinado e o contratante exige que a cirurgia tenha sido efetuada e produza o resultado desejado. É jurisprudência que assim estabelece (STJ, RESP 1180815/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 26/08/2010).
Mas, o problema que se busca discutir não é o da responsabilidade do médico. Mas, se uma vez necessária a cirurgia estética, deve ser feita e se os organismos estatais são obrigadas a suportar a despesa.
Na hipótese de planos particulares, tudo irá depender do que se convencionou. A cláusula contratual de exclusão pode ser válida perante as partes e desobrigar o plano de suportar as despesas com a execução cirúrgica.
O problema que se coloca é se há obrigatoriedade do gasto público em face da manutenção estética do ser humano.
Dividamos o problema. Se o que se busca é cirurgia reparadora parece ser indubitável a responsabilidade o Estado. Por exemplo, se uma mulher tem câncer de seio. Vê-se obrigada à extração ou remoção provisória para eliminação do nódulo. Parece evidente que o Estado tem a obrigação de suportar os custos com tal cirurgia reparatória.
Compliquemos. E se a cirurgia for meramente estética para agradar o paciente ou a paciente? A mulher não está contente com seu seio nem o homem com seu nariz. A cirurgia meramente estética deve ser realizada às custas do Estado?
Estabelece o art. 196 da Constituição Federal: “A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário ás ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Sem dúvida, cabe ao Estado estruturar serviços de prestação de saúde a todos. Mas, estaria obrigado a satisfazer valores íntimos de vaidade, por exemplo? Se alguém deseja efetuar uma cirurgia de seio ou de nariz apenas para melhorar a aparência, poderia a despesa ser suportada pelo serviço médico estatal?
Estaria o Estado obrigado a estabelecer um item orçamentário para suportar gasto com cirurgia estética através do SUS.
É de fazer uma distinção entre cirurgia plástica estética e cirurgia plástica reparadora. A segunda tem o objetivo de corrigir deformidades congênitas ou adquiridas (traumas). Pode-se mencionar a labiopalatal, a lipodistrofia e os queimados. A deformação física natural do lábio (lábio leporino, por exemplo) ou defeito no palato pode ser objeto de cirurgia e o Estado é obrigado a suportar o custo. Da mesma forma a lipodistrofia. Pessoas portadora de HIV/Aids embora tenham amparo legal e melhorado sua situação física, passam a ter alterações metabólicas. Por causa de tais alterações ocorre o aumento da gordura corporal. A lipoatrofia ocorre na região da face, membros superiores e inferiores e nádegas. O excesso atinge o abdome, a região cervical e as mamas.
Também é obrigado o Estado a suportar cirurgias reparadoras nas hipóteses de queimaduras.
O que se dizer da cirurgia meramente estética. Não passa a estética a fazer parte da personalidade das pessoas?
Isso nos leva à indagação sobre o que é a identidade. O indivíduo vive em uma comunidade. No dizer de Agnes Heller: “A comunidade é uma unidade estruturada, organizada, de grupos, dispondo de uma hierarquia homogênea de valores e à qual o indivíduo pertence necessariamente” (“O cotidiano e a história”, ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2008, pág. 96). A sujeição não é permanente nem perpétua. O homem não é englobado pela comunidade. É integrante dela, mas não desaparece nela. É que se transforma em seu eu.Livre da comunidade. Torna-se indivíduo, criando sua própria identidade.
A identidade qualifica o indivíduo. Não é um ente amorfo numa totalidade. Ao contrário, ele se caracteriza como si próprio. Possui caracteres exclusivos que o distinguem dos demais. Cada qual, nesse sentido, tem sua identidade. Mais ou menos ligada à comunidade a que pertence. Pode integrar-se nela completamente ou dela se distinguir. O indivíduo pode se dissolver na sociedade. Perder sua identidade na subordinação total e completa nos costumes e valores da comunidade. Não a perde em verdade, mas identifica-se com a comunidade, aceitando, cegamente, seus valores.
Fernando Pessoa fugiu de sua identidade criando seus heterônimos. Em carta a Armando Côrtes-Rodrigues (19.11.194) ele diz: “Eu já não sou eu. Sou um fragmento de mim conversado num museu abandonado”. A carta enviada a Adolfo Casais Monteiro é maravilha de prosa e de mistura de identidades. Diz “a origem de meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim”. Ele descreve fisicamente Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro. Chega a construir vida para eles. O grande autor português perdeu-se em identidades.
Zygmunt Baumann afirma que “A ideia de identidade nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o deve e o é e erguer a realidade ao nível de padrões estabelecidos pela ideia – recriar a realidade à semelhança da ideia” (“Identidade”, ed. Zahar, 2005, pág. 26).
Não podemos mudar nossa identidade à imagem do lendário Proteu que alterava sua forma a todo instante. A identidade nos marca como um carimbo. Adquirimos certas características que nos acompanharão a vida toda.
Aí é que surge o problema da mulher no mundo contemporâneo. Ela busca, à imagem de Proteu, mudar sua forma a todo instante. Procura identificações várias dependendo das circunstâncias. Especialmente no mundo dos ricos. Os abastados não se conformam em viver suas vidas tal como lhes foram designadas. Buscam a variação do momento. É a futilidade da mudança. Por consequência, surgem as decepções.
Como diz Lipovetsky “a intensificação na busca dos deleites pessoais não é o resultado da desilusão política; ela ganhou uma espécie de ‘autonomia de voo’, dando a entender que ela existe pela criação sistemática de novos mercados, de novos lazeres e de desenvolvimento individual” (Gilles Lipovetsky, “A sociedade da decepção”, ed. Manole, 2007, pág. 43).
É verdade que a mulher busca o contemporâneo, busca a felicidade no mundo tecnicista, mas, como dia o mesmo autor “a felicidade continua sendo o ente mais ingovernável, mais imprevisível de todos” (ob. Cit., pág. 51).
A mulher ao se atrair por marcas, por grifes, por bolsas Louis Vuiton, por roupas e sapatos da Chanel, por perfumes de diversas marcas, por cosméticos franceses de alta qualidade, passa a viver num mundo além de sua identidade.
Foge dos padrões comuns a que de nascimento estava habituada para viver num mundo utópico. Não podem ser criticadas por isso. A maciça propaganda, a competição, a sociedade consumista em que vivem tudo as leva a buscar modos de adaptação à nova realidade.
Vê-se, pois, que a cirurgia estética passa a ser integrante da personalidade da mulher e faz sua identidade no mundo em que passa a viver. Não é mais o mundo romântico do interior, nem das dimensões sociais a que se vê “jogada”. Passa a ser outro mundo para o qual tem que estar preparada. Novos rótulos. Novos instrumentos de consumo. Novas necessidades eletrônicas. Novos cosméticos. Novas possibilidades de busca da felicidade. Novas competições. Novos desejos de reestruturar seu corpo para ser admirada ou, até mesmo para se sentir mais feliz.
“Fragilidade, teu nome é mulher” disse Hamlet (Shakespeare). Ela se vê seduzida pelo chamamento da imprensa, da impressionante propaganda na mídia, da absurda divulgação de novos desejos que se satisfazem com novas necessidades. Ela busca, não apenas para satisfação da comunidade em que vive, com o que adquire nova identidade, mas também para seu aperfeiçoamento pessoal.
Assim, em indagação final: a cirurgia estética é dever do Estado?
Por ora não nos parece que assim deva ser. O Estado tem deveres com a sociedade como um todo e deve desenvolver políticas públicas para atender a todo um plexo de necessidades coletivas mais importantes, como saúde, educação, saneamento básico e transporte. Logo, a cirurgia estética ainda há de aguardar seu lugar no âmbito da despesa pública.
Não se descarta, entretanto, em breve termo, que a cirurgia estética passe a ser de tal forma importante na identidade do ser humano (já não falo só na mulher) que ela venha a ter previsão orçamentária. Num primeiro momento para determinadas cirurgias de embelezamento. Mais adiante, numa segunda etapa, para atender a todos e a tudo, erigindo a beleza como ideal e, pois, surgindo nova política pública.
A beleza, num primeiro lance, pode ser mera cogitação estética; num segundo momento, exigência individual e, mais adiante, necessidade coletiva. O Estado, então, ver-se-á compelido a estabelecer previsão orçamentária para atendê-la.
Não se está fazendo exercício de futurologia, mas apenas imaginando o que possa ser o futuro da humanidade e que se erija a beleza como bem necessário e não mais como secundário.