Um dos atributos da democracia é a possibilidade, aliás direito fundamental, de se manifestar, de dizer o que pensa sobre algo ou alguém, inclusive sobre política.
A livre manifestação do pensamento é direito fundamental, encontrando-se protegido pelo artigo 5º, inciso IV, da Carta Constitucional, que diz: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. É uma norma constitucional, que faz parte das chamadas liberdades públicas, integrante do núcleo intangível da Constituição por ser um dos direitos inerentes à cidadania e à personalidade.
Referido direito pressupõe a possibilidade de externar suas ideias, sua verdade, que não necessita serem a da maioria das pessoas. O cerne desse direito fundamental é justamente poder contrariar qualquer pensamento majoritário, que nem sempre é o mais correto e nem reflete a verdade, que pode variar para cada um. Democracia pressupõe a convergência e, também, a divergência de ideias e de ideologia.
Como o direito à livre manifestação do pensamento é de cunho constitucional, sendo na realidade uma regra, ou existe ou não existe, vale ou não vale. Somente uma outra norma constitucional poderia reduzir esse direito, anotando, porém, que, por se tratar de direito fundamental, não pode ser suprimido ou reduzido por emenda constitucional, visto ser cláusula pétrea, núcleo intangível da Constituição Federal (art. 60, § 4º, da CF).
Lembro, ainda, que o direito à livre manifestação do pensamento é o primeiro a ser suprimido ou limitado em países totalitários (censura).
A simples crítica, debate de ideias, insatisfação com alguma coisa, intenção de corrigir ou de se defender, não são condutas típicas penalmente.
Qualquer forma de censura, mesmo que por meio transverso, é vedada constitucionalmente. Extrapolou o limite entre a livre manifestação do pensamento e a prática de crime, que se puna a conduta, mas não é permitido calar o cidadão previamente, antevendo o que ele irá falar.
Críticas ao sistema eleitoral, desconfiança quanto à lisura do processo eleitoral, confiabilidade das urnas eletrônicas, desabafos por conta de um ou outro candidato ter vencido as eleições, reclamo quanto a restrições a direitos fundamentais, dentre outras questões análogas, são temas corriqueiros e não podem ser considerados tabus ou proibidos de serem discutidos ou comentados, em ambiente privado ou público, mas sempre de forma ordeira e dentro dos limites legalmente permitidos.
Sem essa possibilidade não há democracia, que inexiste sem a liberdade de dizer o que pensa sobre algo ou alguém, notadamente acerca de fato que impactará no futuro de todos os cidadãos, seja de forma positiva ou negativa.
Com efeito, onde as pessoas são obrigadas a medir o que falar por medo de punição, pode ser qualquer outra coisa, menos estado democrático de direito, que pressupõe liberdade responsável, sempre nos limites da legalidade, de modo a não ferir direito constitucional de outrem, como a honra, intimidade e imagem.
É inadmissível em um país democrático qualquer tipo de censura, mesmo que imposta sob o subterfúgio de proteger as pessoas da desinformação. Órgãos criados para bisbilhotar a mídia em geral e o que as pessoas publicam nas redes sociais, são típicos de países totalitários em que o direito de comunicação é restringido ou mesmo suprimido, cujo descumprimento de suas regras pode ensejar processo e até mesmo prisão pelo simples fato de se falar alguma coisa sobre algo ou alguém, direito constitucionalmente consagrado em nossa Carta Constitucional, que tutela a livre manifestação do pensamento.
Não é dado ao Estado impor a sua verdade, intimidando a pessoas com a criação de órgãos que poderão ingressar nas redes sociais de qualquer um, bastando que a conversação seja pública, já que as privadas estão protegidas pelo direito à intimidade.
Não é lícito ter determinado fato como dogma de modo a não poder ser contrariado. É porque é e ponto. Isso não existe em uma democracia. Cada brasileiro tem o direito de absorver informações e pensar por si próprio.
Somente em estados totalitários e despóticos o Estado é o detentor da verdade e da mentira de acordo com sua ideologia e necessidade. Por isso, nesses locais, é o Estado quem filtra as informações e passa à população sua interpretação sobre os fatos de modo a não poderem ser contrariados. Quem o fizer é preso e processado por crime contra a existência do Estado pelo simples fato de pensar e ter sua opinião em desacordo com o imposto por ele.
Pior, ainda, quando as próprias redes sociais, por possuírem determinado viés ideológico, censuram seus usuários, impondo a eles sua posição sobre o que é falso ou verdadeiro e o que pode ou não ser visualizado.
Tal imposição pode se dar diretamente, por meio dos verificadores independentes, ou por meio de algoritmos, programas idealizados para filtrar o que pode ou não ser publicado por meio de palavras chaves ou imagens.
É certo que assinamos com as redes sociais e serviços de mensagerias privadas um contrato de adesão, com diversas cláusulas leoninas.
E, entre essas cláusulas, existe a possibilidade de censura prévia do que os administradores entenderem que ferem as regras de publicação.
Uma empresa privada estrangeira, que não detém o monopólio da informação, não pode censurar de acordo com suas próprias convicções do que se pode publicar ou não. Isso porque seu funcionamento depende de autorização do país onde atua e, por isso, deve obediência às nossas regras constitucionais e legais, notadamente quanto à liberdade de expressão e isonomia, direitos fundamentais de toda pessoa.
Muitas vezes, para não ser explicita a censura, as publicações simplesmente não são entregues para outros usuários ou o são em pequeníssima quantidade, em processo que recebe o nome de “banimento fantasma” (“shadowban”), costumeiramente empregado pelas redes sociais. Tal conduta equivale à própria censura, posto que, em universo de milhares de usuários que compartilham das mesmas ideias, poucos são atingidos pelas publicações.
Não violando a publicação nenhuma norma legal ou a moralidade média e nem sendo objetivamente prejudicial a qualquer pessoa, não cabe à rede social e serviços de mensagerias privadas aplicar a censura, expressamente vedada pela nossa Magna Carta.
Outra forma de censura dissimulada é a desmonetização de canais notadamente no Youtube, sob o pretexto de divulgarem notícias falsas ou incentivarem atos antidemocráticos.
Esses canais difundem notícias e comentários gerais de acordo com a visão do comunicador, que pode, ou não, ser jornalista de profissão, mas são comunicadores e protegidos pela liberdade de expressão e de imprensa, direitos indispensáveis em um país democrático, onde o público em geral tem todo direito de conhecer o que ocorre em seu país e no mundo, além da opinião dos comentaristas e demais formadores de opinião de todos os credos, origens e notadamente ideologia, seja ela qual for, só sendo proibida a difusão do nazismo, que é considerada crime de racismo.
Praticado algum delito, que se instaure uma investigação ou ação penal, observado o devido processo legal, contraditório e ampla defesa; no entanto, censura prévia, expressa ou dissimulada, é proibida pela Constituição Federal.
Infelizmente, o cidadão está sendo paulatinamente tolhido de livremente se expressar por receio ou mesmo medo de retaliações, além de não ter mais as redes sociais como instrumento democrático em que todas as ideias, legais e morais, podem ser veiculadas e difundidas para os quatro cantos do planeta, pouco importando a ideologia do difusor, seja ele mero usuário ou profissional da comunicação.
Pode chegar a um ponto em que o Estado e as redes sociais serão os donos da verdade, caminhando lado a lado para entregar ao cidadão a sua verdade, aquela que lhes convêm, de modo que haverá apenas uma opinião e os que pensarem de modo diverso serão perseguidos, calados, processados e quiçá presos por exercerem um direito constitucional, que o próprio Estado deveria proteger.
César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.
Sempre alegra ler suas palavras pois é uma revisita ao direito verdadeiro, aquel que aprendemos nas bancadas da universidade e o que ainda está expresso na nossa legislação.
Muitos precisam voltar a ler a codificação de leis e especialmente a Constituição Federal de 1988.
Parabéns Dr.