Virou moda a criação de órgãos estatais como o propósito de bisbilhotar o que as pessoas falam nas redes sociais, sob o pretexto de combater a desinformação, notadamente sobre Instituições governamentais, seus integrantes ou, ainda, sobre órgãos do Poder Judiciário.
Resta saber quem dirá o que é verdadeiro, falso, manipulado ou se houve apenas uma interpretação sobre algo ou alguém de acordo com o entendimento do intérprete, lembrando que a mera notícia falsa não é conduta criminosa.
Ou, ainda, se ocorreu mera crítica ou desabafo sobre a conduta de agente público, que, justamente por exercer determinadas funções, perde parcela de alguns direitos, dentre eles a defesa da intimidade, da imagem e mesmo da honra, que, malgrado não possam ser violados, o limite entre a licitude de uma conduta e a prática de infração penal ou civil deve ser flexibilizado e alargado.
Cuida-se de evidente atentado ao direito de livre manifestação do pensamento, criando-se, mesmo que de forma travestida de defesa da democracia, órgãos com caráter intimidatório, que deixarão as pessoas ainda mais temerosas de dizerem o que pensam sobre algo ou alguém, o que já se mostra nítido atualmente, o que caracteriza censura dissimulada, conduta expressamente vedada pela Constituição Federal.
Além do mais, não cabe a órgãos estatais dizerem o que é falso ou verdadeiro, movendo ações ou tomando outras providências contra quem publique ou noticie fatos que não lhes agradem, que fatalmente serão tidos como falsos e que causam desinformação.
O simples temor de ser investigado ou processado já é suficiente para as pessoas se calarem e, com isso, só haverá uma versão dos fatos, justamente daqueles que detém o poder de dizer o que é verdadeiro ou falso segundo suas conveniências políticas ou pessoais.
Caminhamos a passos largos para o regime do cale-se ou esteja preso.
É inadmissível em um país democrático qualquer tipo de censura, mesmo que imposta sob o subterfúgio de proteger as pessoas da desinformação. Órgãos criados para bisbilhotar a mídia em geral e o que as pessoas publicam nas redes sociais, são típicos de países totalitários em que o direito de comunicação é restringido ou mesmo suprimido, cujo descumprimento de suas regras pode ensejar processo e até mesmo prisão pelo simples fato de se falar alguma coisa sobre algo ou alguém, direito constitucionalmente consagrado em nossa Carta Constitucional, que tutela a livre manifestação do pensamento.
Não é dado ao Estado impor a sua verdade, intimidando a pessoas com a criação de órgãos que poderão ingressar nas redes sociais de qualquer um, bastando que a conversação seja pública, já que as privadas estão protegidas pelo direito à intimidade.
É temerário e preocupante que órgãos governamentais sejam árbitros do que é verdadeiro ou falso e, com isso, movam ações judiciais e ofereçam representações para a abertura de investigações criminais pelo simples fato de entenderem que alguém, que pode ser pessoa física ou jurídica, profissional ou não, narre fatos ou critique condutas que, segundo esses órgãos, caracterizem desinformação, posto que ninguém é o dono da verdade.
O motivo é bem simples: a verdade está nos olhos de quem a vê e pode variar para cada intérprete.
Aliás, isso é comum no mundo do direito. Cada ator processual pode interpretar o mesmo fato histórico de maneira totalmente diferente. Pode ser de uma forma para a acusação, de outra para a defesa e o magistrado ainda pode vê-lo de maneira diferente das partes.
Não cabe ao Estado impor sua verdade. Não é lícito ter determinado fato como dogma de modo a não poder ser contrariado. É porque é e ponto. Isso não existe em uma democracia. Cada brasileiro tem o direito de absorver informações e pensar por si próprio.
Somente em estados totalitários e despóticos o Estado é o detentor da verdade e da mentira de acordo com sua ideologia e necessidade. Por isso, nesses locais, é o Estado quem filtra as informações e passa à população sua interpretação sobre os fatos de modo a não poderem ser contrariados. Quem o fizer é preso e processado por crime contra a existência do Estado pelo simples fato de pensar e ter sua opinião em desacordo com o imposto pelo Estado.
Para que isso não ocorra, nos países democráticos, a censura é vedada e cada cidadão pode criticar o que quiser, sem nenhum tipo de limitação. O direito à crítica e de expressar sua opinião sobre algo ou alguém é inerente a toda democracia, que só exige que não se ultrapasse limites constitucionalmente bem delineados de modo a ferir direitos de outrem, como a honra, imagem e intimidade, cabendo ao Judiciário analisar o fato em concreto para se chegar à conclusão sobre a ocorrência de ilícito penal, civil ou administrativo, possibilitando, inclusive, o direito de resposta e indenização por dano material e moral sofridos, sem prejuízo, ainda, de ação penal, quando cabível.
Não é possível em um estado democrático de direito a criação de órgão assemelhado a uma “polícia de informação” ou “procuradoria da informação”, tendo como uma de suas principais funções buscar na imprensa e nas redes sociais em geral notícias que, ao seu ver, são mentirosas e que caracterizam desinformação, o que certamente intimidará as pessoas de se manifestarem porque, ao menos a imensa maioria delas, teme ser investigada e processada e, com isso, ficar com a espada de Dâmocles sobre sua cabeça até o final da demanda, além de ter de custear a despesa com advogados.
De qualquer sorte, a existência de tais órgãos passam a ideia de uma espécie de regulação da mídia e das redes sociais, que, no meu modo de ver, é flagrantemente inconstitucional por se tratar de censura e violar a liberdade de comunicação e de manifestação do pensamento.
Enfim, com a palavra os órgãos competentes que podem mover as necessárias representações, ações ou mesmo edição de decreto legislativo para fazer cessar cristalino atentado contra o direito à livre manifestação do pensamento e a implantação de censura nas redes sociais e na mídia em geral.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá.