Em janeiro de 1976, eu e mais 14 médicos e estudantes da Escola Paulista de Medicina, fomos para o bairro do Cangaiba, Zona Leste de S. Paulo, cumprir uma promessa que fiz ao operário João Chile, que lá morava.
Iniciamos nos fundos da Igreja Bom Jesus do Cangaiba, há 48 anos, um atendimento médico voluntário, junto com leigos do bairro, treinados por nós, que persiste até hoje.
Lá estamos nós agora, eu, o Francé e o Nacime, atendendo a população até hoje.
Ali, naquele ambulatório voluntário, começamos a fazer consultas, exames, pequenas cirurgias, grupos de saúde, debates, cursos, cartilhas educativas e grandes encontros populares. Nossa marca era o vínculo com a população.
Conhecíamos os pacientes por nome e apelido, suas famílias, suas casas, bairro, seus problemas de saúde, suas tristezas e alegrias da vida.
Neste período de 48 anos, atendemos cerca de 160 mil pessoas e eu, pessoalmente, operei 2900 pacientes naquele fundo de igreja. Nossas duas marcas foram e são o humanismo e o acolhimento no atendimento e a relação entre a saúde e as condições de vida.
Assim, saímos do consultório para ir de casa em casa para atender as pessoas e tratá-las. Além de mobilizar os moradores para melhorar o bairro em todos os aspectos.
É um vínculo profissional, humano e social que o nosso voluntariado médico do Cangaiba tem com a comunidade local e de boa parte da Zona Leste de S. Paulo.
Esse ano de 2024, o Programa de Saúde da Família (P.S.F.) faz 30 anos de existência no SUS e podemos afirmar, sem receio, que nosso ambulatório voluntário foi um precursor desse modelo, 20 anos antes de sua existência, de forma pioneira.
As bases do P.S.F., seus princípios de territorialização, de fidelizar os pacientes, de ir além do consultório, de ligar a saúde individual com as condições de vida, foram e são as bases do nosso trabalho no Cangaiba. Há muita similaridade, embora não ganhemos salário e nem tenhamos vínculos trabalhistas.
A primeira iniciativa do SUS rumo ao PSF aconteceu no Paraná e no Ceará com a criação dos agentes comunitários de saúde. Depois, há 30 anos, foram implementadas as equipes de PSF pelo Ministério da Saúde, com um médico generalista, um enfermeiro, dois auxiliares (técnicos) de enfermagem e cinco a seis agentes comunitários de saúde, que deveriam ser escolhidos nas próprias comunidades.
Cada equipe atenderia, em um território delimitado, mil famílias, ou seja, cerca de 4 mil pessoas e cada agente comunitário ficaria com duzentas famílias. Com isso, se formaria um vínculo entre as equipes e os pacientes que iria muito além do consultório e das receitas médicas.
Estas equipes deveriam ser contratadas e administradas pelas Secretarias Municipais de Saúde e parte do financiamento viria do Ministério da Saúde.
Em 1995, a capital paulista havia criado o PAS, que não era reconhecido pelo SUS. Por isso, aqui o PSF ficou sob a gestão da Secretaria Estadual de Saúde. O Governador do Estado era Mário Covas e o Secretário era o Dr. José da Silva Guedes.
Eu estava, junto com o Dr.Francé, na Zona Leste, acompanhando o Ministro Adib Jatene, o Governador Covas e o Guedes em visita a unidades de saúde, quando foi decidido a criação do Qualis, que foi o início do PSF paulistano.
O Francé era o Coordenador de Saúde da Região Leste e coube a ele implementar o Programa na região, que começou com o Santa Marcelina. Depois, nós lutamos para ampliá-lo para a Zona Sul e o restante da cidade.
A Coordenadora Municipal do Qualis era a Dra. Rosa Barros.
Eu andei com meu próprio carro pela Zona Sul procurando locais nos bairros para abrir os PSF.
Nesta época, fui Secretário Municipal de Saúde de Diadema e também levamos o Programa para lá. Eu era também o Presidente do Conselho dos Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (COSEMS), cargo que exerci por duas gestões e batalhei muito para implantar o PSF nos municípios paulistas.
Em 1999, fui eleito Presidente do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e, concomitantemente, o José Serra assumiu o Ministério da Saúde.
Quando cheguei no CONASEMS, o Brasil tinha 1.800 equipes do PSF. Dois anos depois, ao fim do meu mandato, o país já tinha 18 mil equipes. Ou seja, o trabalho do CONASEMS, em parceria com os Estados e sob a liderança do Ministério da Saúde aumentou em 10 vezes o número de equipes no país em dois anos.
Hoje, o Brasil tem 45 mil equipes do PSF, mas a estratégia esbarrou em dificuldades. A principal foi encontrar profissionais médicos com o perfil de generalista que pudesse se dedicar 8h por dia ao Programa. Faltaram e ainda faltam médicos da família, pela formação das faculdades e as características do mercado de trabalho. Os demais profissionais da equipe não foram o problema.
O fato é que o PSF cresceu e hoje é uma realidade positiva no Brasil. Pesquisas apontam que onde a equipe está completa e atende com regularidade, a satisfação dos usuários é de quase 90%.
Graças ao PSF, aumentou a ação de promoção e prevenção na saúde: a vacinação aumentou, a atenção básica se ampliou muito, as ações de prevenção avançaram, o que resultou em melhores índices na mortalidade infantil e na expectativa de vida.
O PSF fez bem ao povo brasileiro.
Nestes 30 anos de existência, embora tenhamos ainda que aprimorar muito o Programa, que hoje é uma estratégia, podemos dizer que temos que comemorar mais essa conquista do SUS.