Tenho lido artigos e visto reportagens de que seria necessária a decretação da prisão preventiva de Eduardo Bolsonaro pelo fato de estar foragido nos Estados Unidos e praticando crimes contra o Estado brasileiro.
No que diz respeito à materialidade, ou seja, a existência de algum crime a punir, já escrevi artigos a respeito que se encontram na Rede (vide links ao final do artigo).
Quero falar sobre outro tema, a possibilidade da decretação da prisão preventiva sem o oferecimento da denúncia, algo muito comum na Justiça Federal, principalmente no Supremo Tribunal Federal, constrição da liberdade cautelar que, por vezes, perdura semanas ou até meses sem a deflagração da ação penal.
Sempre defendi que, quando se requer a decretação da prisão preventiva, a denúncia já deve ser oferecida ou que, excepcionalmente, seja apresentada em breve (até cinco dias), se a medida é urgente e ainda faltam alguns elementos materiais indispensáveis, como o laudo de exame de corpo de delito, que muitas vezes demoram para ser elaborados.
E o motivo é bem simples e lógico: dois dos requisitos básicos indispensáveis para a decretação da prisão preventiva e para o oferecimento e recebimento da denúncia são os mesmos: prova da existência do crime (materialidade) e indícios suficientes de autoria.
Ora, se já há esses elementos não é lógico ser decretada a prisão e a denúncia, que já pode ser oferecida, ser postergada para momento muito posterior, até meses.
Disso decorre que se não há o oferecimento da denúncia naquele momento é que ainda não se apuraram os elementos necessários para a individualização ou esclarecimento da autoria ou porque a prova da existência do delito ainda não se faz presente.
Anoto que não me refiro à conversão da prisão em flagrante em preventiva em que há regras próprias e o estado flagrancial já pressupõe a existência de um crime e fortes indícios de quem foi o seu autor. E sim daquelas situações em que a pessoa está solta ou presa temporariamente com prazo encerrado e as investigações ainda estão pendentes e inconclusivas.
Diferentemente da autoria, que bastam indícios para a deflagração da ação penal, já deve estar presente prova de que um crime ocorreu e que ele enseje a decretação da prisão cautelar. Não se pode prender preventivamente ou iniciar a ação penal para somente depois apurar se houve crime ou qual a sua natureza. Isso é básico no direito processual penal. Tal regra também vale para as medidas cautelares diversas da prisão, como o monitoramento por tornozeleira eletrônica, restrição de frequência a determinados lugares e uso de algum tipo de equipamento.
O sistema processual possui princípios e regras para que situações desse tipo não existam.
Imaginem uma pessoa ser presa preventivamente e, ao final da investigação, sequer acusada ou processada por crime que não enseje prisão. Quem reparará o mal causado a essa pessoa, notadamente o psicológico e à sua honra e imagem?
Prisão cautelar, com exceção da temporária, que possui prazo determinado e visa, no mais das vezes, garantir a eficácia da investigação, não pode ser decretada sem a formal acusação ou, em casos excepcionais, ao menos com o indiciamento, sempre havendo indícios suficientes de autoria e prova da ocorrência de crime (materialidade), cuja condenação seja passível de prisão. Aliás, no que tange à materialidade, também é exigida na prisão temporária, que só pode ser decretada em crimes definidos em sua lei de regência (Lei nº 7.960/1989), todos eles graves.
Lembro, ainda, que prisão domiciliar não deixa de ser modalidade de prisão cautelar, só que cumprida em casa, tanto que será descontada de eventual pena prisional aplicada (detração penal).
No direito existem algumas regras que, mesmo não escritas, se desobedecidas, as consequências podem ser bem ruins, tanto para aquele que a descumpre quanto para a pessoa atingida pelo descumprimento.
O Ministério Público é o titular da ação penal pública (art. 129, I, da CF). Disso decorre que somente ele, por um de seus membros, pode oferecer a denúncia e dar início à ação penal. Nenhum Magistrado, mesmo Ministro do STF, pode iniciar ação penal de ofício ou obrigar o Ministério Público a promovê-la.
Nos Ministérios Públicos Estaduais e no da União, quando o Promotor de Justiça ou o Procurador da República promove o arquivamento do inquérito policial ou de procedimento de investigação criminal, discordando da promoção, o Magistrado remete os autos para que o órgão revisor do Ministério Público (Procurador Geral de Justiça ou Câmara de Revisão) analise o pleito. Concordando com a promoção, o procedimento será arquivado.
Quando se trata de crime de competência originária do STF (autor com prerrogativa de foro), promovido o arquivamento pelo Procurador Geral da República, não há mecanismo para revisão. A única solução jurídica possível é o arquivamento pela Corte, já que ninguém pode obrigar o Ministério Público a promover a ação penal quando ele entender que não é caso, pelos mais variados motivos (atipicidade do fato, prescrição, provas insuficientes, legítima defesa etc.).
Disso decorre que representando a Autoridade Policial pela decretação de uma prisão cautelar com parecer desfavorável do Ministério Público, notadamente por entender que o fato é atípico (que não constitui crime), não obstante o Magistrado possa determinar a prisão, por não ser o parecer Ministerial vinculante, a medida é temerária, já que ao final da investigação o destino do procedimento muito provavelmente será o arquivo, uma vez que já houve manifestação do titular da ação penal pública no sentido de que o fato não configura ilícito penal.
Claro que na maioria das vezes o membro do Ministério Público aguarda o desfecho da investigação para promover o arquivamento do procedimento, mas já deixou claro que é contra a prisão porque não vislumbra tipicidade penal do fato e que ela pode se transformar em constrangimento ilegal pela ausência de ação penal, isto é, a pessoa permaneceu presa por dias ou meses já se antevendo a imensa probabilidade (ou mesmo a certeza) do arquivamento do procedimento.
Por isso, a regra é o Magistrado não decretar a prisão de ninguém por representação da Autoridade Policial, quando o membro do Ministério Público é contra a medida, principalmente por entender que o fato não constitui crime, até porque a restrição cautelar da liberdade é sempre excepcional, lembrando, ainda, que nenhuma medida cautelar, inclusive prisão, pode ser decretada de ofício pelo Magistrado, observado o sistema acusatório de processo.
E ao Magistrado é vedado investigar, dentro do sistema acusatório de processo, que consagra a divisão entre quem investiga, acusa, defende e julga, não existindo no Brasil a figura do Juiz investigador, como na França, por exemplo. Evidente, assim, com muito mais razão, que não pode o Magistrado determinar a prisão cautelar de ofício, isto é, sem requerimento do Ministério Público, na fase policial e judicial, do querelante ou do assistente, na fase judicial, e representação da Autoridade Policial, durante a investigação (inquérito policial), nos termos do art. 311 do CPP. O Magistrado que investiga se torna impedido e, por isso, não pode prolatar a sentença, por ter interesse no desfecho do processo (art. 252, IV, do CPP).
Ademais, prisão preventiva é medida excepcional, que só deve ser decretada em crimes graves, naqueles dolosos cuja pena privativa de liberdade máxima cominada no tipo penal exceda a quatro anos, ou se o delito envolver violência doméstica ou familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para assegurar a execução das medidas protetivas de urgência, ou, ainda, quando o agente não é identificado ou reincidente em crime doloso (art. 313 do CPP).
Além desses requisitos, devem estar presentes uma das circunstâncias previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal, quais sejam, para a garantia da ordem pública ou da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que devidamente fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos, que justifiquem a adoção desta severa medida que, como já dito, é excepcional.
Com efeito, para crimes passados, simplesmente por serem graves, quando não há fato novo ou contemporâneo que a justifique, não pode ensejar a decretação desta medida cautelar, podendo, se o caso, serem aplicadas outras diversas da prisão, como o monitoramento eletrônico.
Assim, se o indiciado, investigado ou acusado por fatos antigos nada fez para justificar a sua prisão preventiva, não é possível sua decretação simplesmente por se tratar de fato grave ou com repercussão social negativa, posto que as regras processuais existem para serem seguidas, seja quem for o autor do fato criminoso ou a vítima. Do contrário, não se trata de aplicação do direito, mas de vingança ou antecipação da pena, que é muito pior, por já pressupor pelo Magistrado a antevisão de uma condenação antes mesmo das provas serem esgotadas e ser oportunizado o contraditório e a ampla defesa.
A liberdade, depois da vida, é o bem jurídico mais importante e sua restrição deve ocorrer naqueles casos expressamente previstos em lei e observados todos os princípios constitucionais e processuais, notadamente da ampla defesa, contraditório e a estrita observância do devido processo legal.
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