Tornou-se usual, notadamente no Supremo Tribunal Federal, a decretação de medidas cautelares, inclusive prisão preventiva, sem o oferecimento da denúncia.
Não raras vezes a constrição da liberdade cautelar perdura semanas ou até meses sem a deflagração da ação penal.
Sempre defendi que, quando se requer a decretação da prisão preventiva, a denúncia já deve ser oferecida ou que, excepcionalmente, seja apresentada em breve (até cinco dias), se a medida é urgente e ainda faltam alguns elementos materiais indispensáveis, como o laudo de exame de corpo de delito, que muitas vezes demoram para ser elaborados.
E o motivo é bem simples e lógico: dois dos requisitos básicos indispensáveis para a decretação da prisão preventiva e para o oferecimento e recebimento da denúncia são os mesmos: prova da existência do crime (materialidade) e indícios suficientes de autoria.
Ora, se já há esses elementos não é lógico ser decretada a prisão e a denúncia, que já pode ser oferecida, ser postergada para momento muito posterior, até meses.
Disso decorre que se não há o oferecimento da denúncia naquele momento é que ainda não se apuraram os elementos necessários para a individualização ou esclarecimento da autoria ou porque a prova da existência do delito ainda não se faz presente.
Anoto que não me refiro à conversão da prisão em flagrante em preventiva em que há regras próprias e o estado flagrancial já pressupõe a existência de um crime e fortes indícios de quem foi o seu autor. E sim daquelas situações em que a pessoa está solta ou presa temporariamente com prazo encerrado e as investigações ainda estão pendentes e inconclusivas.
Diferentemente da autoria, que bastam indícios para a deflagração da ação penal, já deve estar presente prova de que um crime ocorreu e que ele enseje a decretação da prisão cautelar. Não se pode prender preventivamente ou iniciar a ação penal para somente depois apurar se houve crime ou qual a sua natureza. Isso é básico no direito processual penal. Tal regra também vale para as medidas cautelares diversas da prisão, como o monitoramento por tornozeleira eletrônica, restrição de frequência a determinados lugares e retenção de passaporte.
O sistema processual possui princípios e regras para que situações desse tipo não existam.
Imaginem uma pessoa ser presa preventivamente e, ao final da investigação, sequer acusada ou processada por crime que não enseje prisão. Quem reparará o mal causado a essa pessoa, notadamente o psicológico e à sua honra e imagem?
E tal fato ocorreu com o ex-presidente Bolsonaro, que teve decretadas medidas cautelares e, posteriormente, sua conversão em prisão domiciliar, que não deixa de ser modalidade de prisão cautelar, só que cumprida na residência do atingido, tanto que será descontada da pena prisional aplicada em razão da detração penal, com fundamento no artigo 42 do Código Penal.
Ora, se foi decretada a prisão preventiva — inclusive a domiciliar —, é porque existiam — ou deveriam existir —, indícios suficientes de autoria e prova da ocorrência de um crime, requisitos estes que não desaparecem de uma hora para outra. Se isso ocorreu, das duas uma: ou um desses elementos não se fazia presente, tanto que a denúncia não foi oferecida, ou a prisão decorreu de antecipação de pena e má-fé, o que caracteriza abuso, sujeito a indenização por danos materiais e morais por prisão indevida, além de crime de abuso de autoridade, se ficar demonstrado o dolo específico de querer prejudicar o atingido pela prisão cautelar indevida.
Evidente que não pode ser descartada a hipótese de investigação realizada às pressas e que a prisão decorreu de negligência, imprudência e/ou imperícia, isto é, de culpa de alguém, erro que também é indenizável pela prisão indevida.
Prisão cautelar, com exceção da temporária, que possui prazo determinado e visa, no mais das vezes, garantir a eficácia da investigação, não pode ser decretada sem a formal acusação ou, em casos excepcionais, ao menos com o indiciamento, sempre havendo indícios suficientes de autoria e prova da ocorrência de crime (materialidade), cuja condenação seja passível de prisão. Aliás, no que tange à materialidade, também é exigida na prisão temporária, que só pode ser decretada em crimes definidos em sua lei de regência (Lei nº 7.960/1989), todos eles graves.
No direito existem algumas regras que, mesmo não escritas, se desobedecidas, as consequências podem ser bem ruins, tanto para aquele que a descumpre quanto para a pessoa atingida pelo descumprimento.
Ademais, prisão preventiva é medida excepcional, que só deve ser decretada em crimes graves, naqueles dolosos cuja pena privativa de liberdade máxima cominada no tipo penal exceda a quatro anos, ou se o delito envolver violência doméstica ou familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para assegurar a execução das medidas protetivas de urgência, ou, ainda, quando o agente não é identificado ou reincidente em crime doloso (art. 313 do CPP).
Além desses requisitos, devem estar presentes uma das circunstâncias previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal, quais sejam, para a garantia da ordem pública ou da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que devidamente fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos, que justifiquem a adoção desta severa medida que, como já dito, é excepcional.
Com efeito, para crimes passados, simplesmente por serem graves, quando não há fato novo ou contemporâneo que a justifique, não pode ensejar a decretação desta medida cautelar, podendo, se o caso, serem aplicadas outras diversas da prisão, como o monitoramento eletrônico.
Assim, se o indiciado, investigado ou acusado por fatos antigos nada fez para justificar a sua prisão preventiva, não é possível sua decretação simplesmente por se tratar de fato grave ou com repercussão social negativa, posto que as regras processuais existem para serem seguidas, seja quem for o autor do fato criminoso ou a vítima. Do contrário, não se trata de aplicação do direito, mas de vingança ou antecipação da pena, que é muito pior, por já pressupor pelo Magistrado a antevisão de uma condenação antes mesmo das provas serem esgotadas e ser oportunizado o contraditório e a ampla defesa.
A liberdade, depois da vida, é o bem jurídico mais importante e sua restrição deve ocorrer naqueles casos expressamente previstos em lei e observados todos os princípios constitucionais e processuais, notadamente da ampla defesa, contraditório e a estrita observância do devido processo legal.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.