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Bolsonaro deve cumprir pena em cela comum ou em prisão domiciliar? – por Cesar Dario

Uma discussão jurídica que certamente ganhará manchetes e intensa defesa nas redes sociais e na mídia em geral diz respeito à possibilidade de Bolsonaro cumprir pena em cela comum ou, ao contrário, permanecer em prisão albergue domiciliar em razão de seus problemas de saúde, que, segundo noticiado, seriam sérios e capazes de colocar sua vida em risco.

Essa situação é corriqueira para quem milita na seara das execuções criminais.

Muito embora não exista previsão legal expressa, admite-se, em caráter absolutamente excepcional, que mesmo o condenado que se encontra no regime fechado seja transferido para o regime aberto domiciliar quando demonstrar a existência de problemas de saúde graves, a ponto de a permanência na unidade prisional representar risco concreto à sua vida.

Isso ocorre quando o tratamento adequado não pode ser realizado dentro do estabelecimento prisional ou mesmo em hospital penitenciário sem expor o preso a risco real e atual. Para tanto, exige-se prova técnica idônea, consistente em laudos, exames e relatórios médicos que indiquem a presença de comorbidade relevante, a necessidade de cuidados especiais e a impossibilidade de prestação do tratamento no âmbito do sistema penitenciário.

Outra alternativa frequentemente utilizada é o deslocamento do preso, sob escolta, para a rede pública ou privada de saúde, a fim de que receba o tratamento necessário. Porém, quando os cuidados são contínuos ou exigem acompanhamento constante, tornam-se inviáveis os deslocamentos frequentes, especialmente em razão da necessidade de escolta, da limitação de vagas e da ausência de estrutura hospitalar adequada para receber um preso sem gerar riscos a terceiros ou transtornos administrativos ao estabelecimento.

Nessas hipóteses, quando existe perigo de morte ou risco de agravamento significativo do quadro clínico, é juridicamente possível e, muitas vezes, mais razoável determinar a prisão albergue domiciliar.

Diante desse cenário, surge inevitavelmente a seguinte indagação: é possível responsabilizar penalmente o agente público que, de forma dolosa ou culposa, permite que sobrevenha a morte ou lesões corporais em preso que necessita de atendimento médico adequado?

Sim, é possível ser responsabilizado por crime cometido por omissão.

No que consiste a omissão? Quando o agente público poderá ser responsabilizado por ela?

É o que pretendo explicar da forma mais simples possível.

A conduta, em regra, se revela pela ação. Esta é uma atitude positiva realizada por meio de um movimento corpóreo tendente a uma finalidade. Quando o crime é cometido de forma positiva (ação), diz-se que o foi por comissão.

A conduta comissiva é a concretização material da vontade do agente e é realizada mediante a prática de um ou mais atos. O ato é um componente da conduta comissiva (ação). Assim, o crime pode ser praticado com um único ato (ex: injúria oral) ou com mais de um ato (ex: estelionato). Se houver um único ato o crime será unissubsistente, se mais de um ato o crime será plurissubsistente.

Já a omissão consiste em deixar de fazer alguma coisa, quando a lei o obrigava a agir. A omissão é normativa, pois a lei é que obriga a pessoa a agir em face de determinado caso concreto. Em suma, a pessoa tem o dever jurídico de agir e acaba se omitindo. A conduta omissiva enseja duas formas de delito:

1) Omissivos próprios ou puros:

Concretizam-se com a simples conduta negativa do agente, independentemente da produção de qualquer resultado posterior. A norma é que determina o comportamento positivo. São crimes necessariamente previstos em tipos penais específicos. Exemplos: omissão de socorro (art. 135 do CP); abandono material (art. 244 do CP); omissão de notificação de doença (art. 269, do CP).

Há situações em que da omissão advêm lesões corporais de natureza grave (ou gravíssima) ou a morte da vítima como eventos preterdolosos. Nesses casos, embora o omitente não seja o causador direto do resultado, que sequer é exigido para a caracterização do delito em sua forma simples, ele atua com dolo de perigo na omissão e com culpa no resultado mais grave. Por isso, ele não responde por crime de lesão corporal ou homicídio culposo, mas a sua pena pelo crime omissivo próprio poderá ser majorada, obviamente quando houver previsão legal para o aumento da reprimenda. É o que ocorre com o delito de omissão de socorro (art. 135 do CP). Há, porém, necessidade de que exista comprovação de que a atuação do agente evitaria a produção do resultado.

2) Omissivos impróprios ou comissivos por omissão:

Ocorre quando alguém, que está obrigado a agir positivamente, se omite e permite que o resultado se produza, embora pudesse evitá-lo. Esses delitos, em regra, são cometidos por ação. Entretanto, também podem sê-los por omissão, e por isso são chamados de comissivos por omissão. O sujeito não é responsabilizado por ter causado o resultado, uma vez que não se pode estabelecer nexo de causalidade entre a omissão e o resultado, mas por não ter agido quando tinha o dever jurídico de impedir-lhe a produção, quando lhe era possível fazê-lo. Por isso, entende-se que a omissão é normativa, uma vez que a norma é que obriga o sujeito a agir em determinados casos. A pessoa tem o dever jurídico de impedir o resultado, desde que possível fazê-lo, nos seguintes casos previstos no art. 13, § 2º, do CP:

a) Tenha por lei a obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: Há situações em que a norma penal ou extrapenal determina que a pessoa não se omita, quando existir a obrigação de cuidar, de proteger ou de vigiar, podendo o sujeito responder por crime doloso ou culposo (havendo previsão para a modalidade culposa do delito), dependendo da omissão ser dolosa ou culposa. Exemplos: a mãe que, dolosa ou culposamente, deixa de amamentar o filho, que vem a morrer; o policial que, vendo alguém ser agredido, nada faz para conter os agressores; o diretor da cadeia que deixa de atender um preso gravemente enfermo, que acaba falecendo. Em todas essas situações há norma expressa determinando que o sujeito não se omita e evite a produção do resultado (Constituição Federal, Código Civil, Lei das Execuções Penais e outras).

b) De outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado: O sujeito, de outra maneira, tornou-se garantidor da não ocorrência do resultado. São situações da vida ou decorrentes de negócios em que o sujeito assume a responsabilidade de evitar a produção do resultado, podendo, inclusive, responder penalmente por ele a título de dolo ou de culpa, se existente a modalidade culposa do delito. Não é exigido contrato escrito, mas a mera obrigação de impedir a produção do resultado. Isso porque o dever de garantidor não se confunde com a obrigação contratual, sendo indiferente qualquer limitação existente em eventual contrato. Exemplos: a enfermeira que, contratada para cuidar do doente, não o faz devidamente e ele morre; o vigia que dolosamente não avisa a polícia ao ver o condomínio em que trabalha ser assaltado; o médico que se recusa a operar o paciente gravemente enfermo, que vem a falecer.

c) Com seu comportamento anterior criou o risco da ocorrência do resultado: Um ato precedente determina essa obrigação. Como o sujeito ocasionou o risco da produção do resultado, voluntária ou involuntariamente, deve evitar que ele ocorra, sob pena de responder por seu advento. Exemplos: o exímio nadador que convida alguém a um longo nado e o deixa morrer afogado; o sujeito que, por brincadeira, joga o amigo dentro da piscina e não impede que ele se afogue.

Destarte, considerando que a omissão é a abstenção de um comportamento exigido pelo ordenamento jurídico que o sujeito deveria e poderia realizar, temos que ela é composta de dois elementos: a) dever de agir; b) poder de agir. Assim, como deixa claro o art. 13, § 2º do CP, a omissão será penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado.

De acordo com a regra geral, todos os cidadãos têm o dever de cumprir as determinações impostas pelo poder público. Entretanto, quando se trata de responsabilização penal, somente as pessoas que possuem o dever jurídico de agir é que poderão ser responsabilizadas criminalmente quando se omitirem dolosa ou culposamente.

Dessa forma, enquanto nos crimes omissivos próprios o agente falta, com sua inatividade, a uma determinação legal que lhe obriga a agir em determinado caso concreto independente da produção de qualquer resultado naturalístico (ex: art. 135 do CP – omissão de socorro), nos crimes omissivos impróprios o sujeito, que devia e podia agir para evitar o resultado que constitui o tipo penal, se omite (dolosa ou culposamente) e permite que o resultado se produza. Essas pessoas são chamadas pela doutrina de garantes.

Há de ser ressaltado que o sujeito somente será obrigado a agir se lhe for possível fazê-lo (poder de agir). Dessa forma, se o sujeito se omitir porque se encontrava fisicamente impossibilitado de agir, não poderá ser responsabilizado pela omissão, mesmo que presente o dever de agir. É o caso do bombeiro que atende a incêndio em um prédio, mas está impossibilitado de entrar para socorrer pessoas em virtude do enorme potencial destrutivo do fogo, que certamente lhe causaria a morte.

Havendo o dever e o poder de agir, faz-se necessário também o dolo ou a culpa para que o sujeito possa ser responsabilizado penalmente. No que é pertinente ao dolo, não se exige que o sujeito queira o resultado, bastando que tenha a consciência que deve agir para evitá-lo e a vontade de não o fazer. Quanto à culpa, poderá ocorrer se houver erro quanto a uma situação fática, como quando o pai ouve os gritos do filho que está se afogando e, pensando tratar-se de uma brincadeira, não o socorre; quando o bombeiro pensa que o incêndio é de grandes proporções e não intervém para salvar uma pessoa. Lembro que no caso de omissão culposa, o omitente somente poderá ser responsabilizado penalmente se houver previsão para a modalidade culposa do delito.

Observo, ainda, que para haver a responsabilização penal do omitente por crime omissivo impróprio, também há necessidade da demonstração de que com sua atitude positiva o resultado não teria ocorrido (evitabilidade do resultado).

Especificamente no caso de preso, que se encontra sob a guarda, vigilância e proteção estatal, cabe ao Estado lhe prestar o devido auxílio médico, seja na própria unidade prisional, em hospital penitenciário, em hospital público ou até mesmo privado, se não for possível a prestação do necessário e adequado atendimento médico, de rotina ou de urgência, em unidade hospitalar pública.

Em algumas hipóteses excepcionais, quando não é possível o tratamento médico especializado na unidade prisional, em hospital penitenciário, hospital público ou mesmo privado que o Estado possa utilizar, a prudência recomenda, se o preso assim pleitear, o deferimento da prisão domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica, a fim de que seja atendido por médico e em hospital particular. Isso normalmente ocorre quando não se trata de preso perigoso, como homicidas, latrocidas, sequestradores e integrantes de organização criminosa.

Do contrário, sobrevindo lesões corporais ou a morte do preso pela omissão estatal em lhe prestar atendimento médico necessário e adequado, pode o agente público responsável pela negativa (diretor da unidade prisional ou mesmo o magistrado que indefere o pedido de atendimento médico ou de prisão domiciliar) ser responsabilizado por crime doloso ou culposo, a depender da hipótese.

Saliento, aliás, não ser exigível que o omitente quisesse a produção do resultado, bastando que tivesse a consciência de que deveria agir para evitá-lo e a vontade de não o fazer. Neste caso, do mesmo modo daquele que quer o resultado, o omitente responderá pelo mesmo delito que não impediu, quando possível fazê-lo. Assim, se sobrevier a morte do preso por sua omissão, será responsabilizado por homicídio doloso.

Até mesmo por crime de homicídio omissivo com dolo eventual poderá ser responsabilizado, quando assume o risco de o preso morrer e tolera a produção deste resultado, não prestando ou não autorizando a prestação do necessário e adequado atendimento médico. É o famoso dane-se no direito penal. “Sei que posso causar a morte do preso que necessita de atendimento médico, mas, se ela ocorrer, dane-se”. O mesmo ocorre quando tudo leva a crer que não haverá o necessário atendimento médico a preso com saúde precária e risco de morte, e se indefere a prisão domiciliar.

Contudo, se a omissão se deu por culpa do agente público, isto é, por imprudência, imperícia ou negligência, poderá ser responsabilizado por lesões corporais ou homicídio culposo.

Resumindo: se a omissão for dolosa (dolo direto ou eventual) e houver a produção de resultado naturalístico (morte ou lesões corporais), o agente público será responsabilizado por homicídio doloso ou lesões corporais dolosas; se a omissão for culposa e advier resultado naturalístico (morte ou lesões corporais), o agente público será responsabilizado por homicídio culposo ou lesões corporais culposas.

Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá.

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