O Imposto Seletivo (IS), apresentado no PLP 68/2024 como parte da reforma tributária sobre a produção e o consumo, vem sendo vendido como um instrumento para desestimular o consumo de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. No entanto, uma análise mais profunda revela que essa premissa pode ser uma falácia, com o imposto se tornando meramente uma fonte adicional de arrecadação, enquanto os consumidores arcam com mais um pesado ônus tributário.
A pedra angular do IS é a tributação diferenciada de bens e serviços considerados “pecaminosos”, como cigarros, bebidas alcoólicas, alimentos ultraprocessados e veículos poluentes.
Uma primeira crítica ao Imposto Seletivo (IS) é seu próprio objetivo, que se mostra vago e impreciso, e que levanta dúvidas sobre sua eficácia e aplicação justa. Pense, por exemplo, na água. Ela é um dos recursos mais essenciais para a vida e também um dos mais escassos, especialmente em certas regiões do Brasil. No entanto, a água pode se tornar prejudicial ao meio ambiente quando extraída e utilizada de maneira indiscriminada e ineficiente. O desperdício de água no Brasil é enorme, agravando problemas de escassez hídrica e impactos ambientais. Assim, surge a pergunta: deveríamos tributar a água para tentar reduzir seu consumo e desperdício?
Essa possibilidade destaca a imprecisão do IS. Embora a intenção seja boa—desencorajar o consumo de bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente—o critério para definir o que é “prejudicial” pode ser extremamente subjetivo. Isso abre um precedente perigoso para a criação de impostos que podem afetar indiscriminadamente recursos e bens essenciais, como infraestrutura, energia e combustíveis que, sabidamente geram impactos ambientais negativos.
Os tributos “pigouvianos”, que têm como objetivo alterar padrões de consumo ao internalizar custos sociais, devem ser implementados em contextos muito específicos e com critérios bem definidos. A falta de clareza no objetivo do IS pode levar a uma aplicação inadequada do imposto, comprometendo sua eficácia e tornando-o alvo de críticas e controvérsias. Se até a água, um recurso vital e precioso, pode ser considerada prejudicial sob certas circunstâncias, onde traçaremos a linha?
Portanto, o argumento de que o IS visa reduzir a demanda por produtos prejudiciais é insustentável se não houver critérios precisos e justificáveis para sua aplicação. A vagueza e a abrangência da definição do que é “prejudicial” podem transformar uma boa ideia em um desastre regulatório, com consequências econômicas e sociais imprevisíveis.
Ademais, produtos nocivos como bebidas e fumo são produtos que possuem uma característica em comum: têm funções de demanda bastante inelásticas em relação ao preço. E sobre esses produtos se concentram boa parte dos chamados impostos seletivos ou excises, não por seu efeito corretivo mas sim por seu potencial arrecadatório. Quando um imposto é introduzido em bens com demanda inelástica,a maior parte do ônus recai sobre os consumidores, a quantidade consumida é pouco alterada, e há poucas alternativas de substituição.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que, mesmo com aumentos substanciais nos preços dos cigarros devido a impostos, a queda no consumo é modesta. Por exemplo, um aumento de 10% no preço dos cigarros leva a uma redução de apenas 4% no consumo em países de alta renda e 6% em países de baixa e média renda. Números semelhantes são observados para bebidas alcoólicas e alimentos ultraprocessados.Além disso, o aumento de preços desses produtos frequentemente incentiva o mercado ilegal e o contrabando.
Essa baixa elasticidade-preço da demanda por esses produtos significa que o Imposto Seletivo terá um impacto limitado em alterar os comportamentos de consumo indesejados. Em vez disso, ele simplesmente transferirá renda dos consumidores para os cofres públicos, sem necessariamente promover melhorias significativas em termos de saúde pública e preservação ambiental.
Além disso, a experiência histórica demonstra que impostos excessivamente altos sobre produtos como cigarros e bebidas alcoólicas tendem a fomentar o contrabando e o mercado ilegal. De acordo com dados da Receita Federal, em 2022, 34% dos cigarros consumidos no Brasil eram contrabandeados, representando uma perda de arrecadação de R$ 10 bilhões. Situação semelhante ocorre com bebidas alcoólicas, com o mercado ilegal respondendo por cerca de 20% do consumo nacional.
Portanto, ao invés de promover mudanças comportamentais positivas, o Imposto Seletivo pode acabar incentivando atividades ilegais e prejudiciais à sociedade, como o contrabando e a sonegação fiscal. Além disso, os consumidores de baixa renda serão desproporcionalmente afetados, pois esses produtos representam uma parcela maior de seus orçamentos familiares.
É importante ressaltar que o objetivo de desestimular o consumo de produtos nocivos é louvável e alinhado com políticas públicas de saúde e sustentabilidade. No entanto, a abordagem do Imposto Seletivo parece ser uma solução simplista e potencialmente ineficaz para um problema complexo.
Em vez de confiar exclusivamente em medidas tributárias, seria mais prudente adotar uma estratégia abrangente, envolvendo educação, conscientização, regulamentação rigorosa, incentivos a produtos saudáveis e sustentáveis, além de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de alternativas viáveis. Somente uma abordagem multifacetada e baseada em evidências pode efetivamente promover mudanças duradouras nos padrões de consumo da sociedade.
Para entender melhor o impacto positivo ou negativo do Imposto Seletivo, é interessante observar experiências internacionais. Exemplos de outros países que adotaram políticas semelhantes podem oferecer insights valiosos e ajudar a prever possíveis desdobramentos no Brasil.
Suécia: A Suécia, por exemplo, impôs impostos altos sobre produtos de tabaco, justificando a medida com base em preocupações de saúde pública. Apesar de uma redução inicial no consumo, a demanda permaneceu relativamente alta. Isso reforça a tese de que aumentos de preço nem sempre desincentivam o consumo de bens prejudiciais e, muitas vezes, têm um forte componente arrecadatório.
Dinamarca: Outro caso interessante é o da Dinamarca, que instituiu um imposto sobre alimentos com alto teor de gordura em 2011. Embora a medida tenha sido elogiada inicialmente por suas intenções saudáveis, foi revogada após um ano devido à complexidade de implementação e à resistência pública. O descontentamento foi agravado pelas dificuldades econômicas que o imposto gerou, afetando, principalmente, as famílias de renda mais baixa.
Canadá: Por outro lado, o Canadá demonstrou algum sucesso com impostos sobre bebidas açucaradas. Estudos indicam que houve uma diminuição no consumo desses produtos, além de gerar receita adicional para o governo, que foi direcionada a programas de saúde pública. No entanto, ainda é debatido se esses resultados são sustentáveis a longo prazo.
Esses exemplos realçam a complexidade e as diversas reações ao Imposto Seletivo. Embora a intenção declarada seja promover a saúde pública e proteger o meio ambiente, os resultados variam bastante, e a eficácia desses impostos muitas vezes é questionável. No caso do Brasil, é importante considerar todos esses fatores antes de avaliar se o Imposto Seletivo alcançará seus objetivos declarados ou se funcionará primariamente como uma ferramenta de arrecadação.