Muito se tem falado a respeito do “Projeto Antifacção” enviado ao Congresso Nacional pelo Governo Federal. Ainda não tive acesso ao texto integral, motivo pelo qual a presente análise se baseia nas informações divulgadas pela imprensa e pela própria página oficial do Governo.
O projeto cria a figura da “organização criminosa qualificada”, destinada a enquadrar grupos que controlam territórios ou atividades econômicas mediante violência ou intimidação, com pena prevista entre oito e quinze anos de reclusão.
Haverá aumento de pena nos casos em que a facção criminosa mantiver conexão com outras organizações independentes, possuir caráter transnacional, exercer domínio territorial ou prisional, ou ainda quando resultar morte ou lesão corporal de agente de segurança pública.
O projeto prevê pena de 12 a 30 anos de reclusão para o homicídio cometido a mando ou em benefício de organização criminosa, qualificando-o ainda como crime hediondo. Trata-se, contudo, de nítida redundância legislativa, uma vez que tal conduta já se encontra plenamente abrangida pelo tipo de homicídio qualificado pelo motivo torpe (art. 121, §2º, I, do Código Penal), cuja pena é igualmente de 12 a 30 anos de reclusão e que, por força da Lei nº 8.072/1990, também é classificado como crime hediondo. Em outras palavras, o novo dispositivo é inteiramente desnecessário, possuindo caráter meramente simbólico e apelo midiático, sem qualquer ganho de efetividade prática na repressão penal.
A proposta também eleva a pena para a mera integração ou participação em organizações criminosas. Atualmente, a pena cominada é de três a oito anos, passando, conforme o projeto, para cinco a dez anos de reclusão. Essa alteração é positiva, pois a pena atual é de fato branda diante da gravidade do fenômeno das facções.
Ocorre que está sendo noticiado pela imprensa que o projeto também criará uma causa de diminuição de pena, instituindo a figura da chamada “organização criminosa privilegiada”, hipótese em que haverá redução da reprimenda. Cuida-se de evidente contrassenso, especialmente diante da experiência malsucedida com o tráfico de drogas.
Com efeito, o redutor previsto no art. 33, §4º, da Lei nº 11.343/2006 — aplicável ao condenado primário, de bons antecedentes, que não se dedica à atividade criminosa nem integra organização criminosa — tornou-se verdadeira válvula de escape para o delito de tráfico. Tal benefício tem produzido um número expressivo de condenações com penas fixadas abaixo de quatro anos, frequentemente em torno de um ano e oito meses de reclusão, o que impõe ao magistrado a fixação do regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, normalmente prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária equivalente a um salário-mínimo.
Esse cenário, absolutamente incompatível com a gravidade do tráfico de entorpecentes, acabou por esvaziar o rigor repressivo da norma e multiplicar, na prática, condenações simbólicas, destituídas de efeito dissuasório. Trata-se de uma distorção legislativa que transformou um suposto benefício excepcional em verdadeira regra.
Agora, pretende-se repetir o equívoco ao prever uma forma privilegiada de participação em organização criminosa. A incoerência é manifesta: no tráfico de drogas, justamente a vinculação a uma organização criminosa impede a aplicação do redutor; enquanto, paradoxalmente, no projeto governamental, o faccionado poderá se beneficiar da redução de sua pena em determinadas hipóteses.
Em síntese, o projeto, ao invés de endurecer as sanções aplicáveis a esse tipo de criminalidade, termina por criar uma válvula de escape, similar ao chamado “tráfico privilegiado”, apta a reduzir sensivelmente as penas dos integrantes de organizações criminosas — o que representa um grave retrocesso na política criminal e um contrassenso sob qualquer perspectiva de coerência legislativa (ressalva-se que esta análise é feita com base nas informações divulgadas pela imprensa, sem exame do texto integral do projeto.)
O projeto também aumenta as penas para os crimes de formação de milícia privada ou organização paramilitar, embora o montante exato ainda não tenha sido divulgado.
Há previsão de medidas para “asfixiar” financeiramente as facções, como a intervenção em empresas vinculadas à estrutura criminosa (com nomeação de interventor), perda de bens e criação de base de dados nacional sobre facções.
Prevê-se, ainda, a ampliação de mecanismos de investigação, incluindo infiltração de agentes (inclusive colaborador infiltrado), utilização de empresas fictícias, monitoramento de presos e gravação de conversas no parlatório. Quanto a este último ponto, ressalto que a gravação de diálogos entre preso e advogado é em regra inconstitucional, só podendo ser admitida em casos excepcionais, com provas robustas de que o defensor atua como partícipe da organização.
Outra previsão é a possibilidade de o juiz determinar que provedores de internet, telefonia e empresas de tecnologia viabilizem o acesso a dados de geolocalização em situações de ameaça à vida ou à integridade de pessoas.
Por fim, o projeto autoriza que o Poder Executivo crie o Banco Nacional de Facções Criminosas.
Com toda sinceridade, não vejo quase nada de inovador no projeto, que possui muitas medidas que poderiam ser determinadas cautelarmente pelo Magistrado, empregando seu poder geral de cautela, sem necessidade de lei, como é o caso de monitoramento da conversa de presos no parlatório e acesso a dados de geolocalização em casos de ameaça à vida ou integridade física de pessoas.
Algumas propostas, contudo, são interessantes, como a criação de empresas fictícias, a base de dados nacional e a intervenção em empresas suspeitas, ainda que tais medidas já possam ser determinadas judicialmente — o que o projeto faz é simplificar sua adoção pelos órgãos de persecução penal, reduzindo discussões sobre sua legalidade.
Pessoalmente, entendo que as facções deveriam ser equiparadas a organizações terroristas, cuja pena é de 12 a 30 anos de reclusão quando há emprego de violência, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência, que se somam.
E os motivos principais são:
- Permissão de aplicação de diversos tratados internacionais de cooperação mútua;
- Maior facilidade para o emprego das FFAA mediante decreto de GLO;
- Previsão de punição de planejamento de atos de terror;
- Mecanismos de investigação mais eficientes, inclusive os previstos na Lei do Crime Organizado;
- Maior facilidade de deferimento de pedidos de cooperação jurídica internacional para bloqueio de bens no exterior em países em que essa providência é mais difícil;
- Penas maiores para os praticantes de atos de terror com o emprego de violência e ainda mais severas para seus financiadores.
Ou seja, cuidando-se de organizações terroristas tudo é mais facilitado para a prevenção dos atos de terror, sua investigação e punição dos autores, idealizadores e financiadores.
Quando o agente apenas promove, constitui, integra ou presta auxílio à organização terrorista, a pena é de cinco a oito anos. Contudo, tanto o PCC quanto o CV empregam sistematicamente a violência — especialmente o CV, ao manter o domínio territorial e extorquir moradores de comunidades, impondo regras sob ameaça, tortura ou morte. Portanto, para tais grupos, a figura qualificada seria plenamente aplicável, com pena de 12 a 30 anos de prisão.
A Lei Antiterrorismo (Lei 13260/2106) pune atos preparatórios de terrorismo, isto é, planejando um atentado já é suficiente para a punição, com a redução das penas. Portanto, realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito, a pena será a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.
Identifico, contudo, dois graves problemas no Projeto de Lei Antiterrorismo.
O primeiro é que o texto perdeu a oportunidade de tipificar o terrorismo político e ideológico, justamente a forma mais recorrente em todo o mundo contemporâneo. Restringir a punição apenas aos atos de terror decorrentes de xenofobia ou preconceito de raça, cor, etnia e religião é manifestamente insuficiente e pouco condizente com a realidade brasileira e internacional.
É provável que o legislador tenha evitado essa ampliação para não gerar receios de criminalização dos movimentos sociais, o que não se sustenta. O § 2º do artigo 1º da Lei nº 13.260/2016 — que o PL mantém — expressamente afasta a incidência da lei às manifestações políticas, sociais, sindicais, religiosas, de classe ou de categoria profissional, desde que voltadas à defesa de direitos, garantias e liberdades constitucionais. Assim, atos violentos praticados em manifestações podem configurar outros ilícitos penais (como dano, lesão corporal ou incêndio), mas não terrorismo. Logo, a ausência da tipificação do terrorismo político e ideológico constitui uma lacuna grave e de difícil justificativa.
O segundo e igualmente preocupante ponto é a manutenção da competência investigatória exclusiva da Polícia Federal. Tal escolha tende a engessar e atrasar as investigações, sobretudo considerando que os Estados já dispõem de Delegacias especializadas e Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECOS), altamente capacitados e com reconhecida eficiência. Além disso, esses órgãos atuam com maior autonomia em relação a eventuais influências político-ideológicas do Governo Federal, o que é essencial em investigações sensíveis.
O modelo ideal seria o de competência subsidiária, permitindo que as polícias civis estaduais e os Ministérios Públicos locais conduzissem as apurações, com apoio da Polícia Federal quando necessário. Isso garantiria maior capilaridade, celeridade e independência institucional na repressão aos atos de terrorismo.
De igual modo, ao invés de fixar a competência da Justiça Federal — geralmente assoberbada por grande volume de feitos e com tramitação mais lenta —, seria mais adequado que a Lei Antiterrorismo fosse alterada para estabelecer a competência da Justiça Estadual para os casos que envolvam facções criminosas, conferindo maior celeridade e efetividade à persecução penal.
No entanto, o fato de o PL já prever a possibilidade de enquadramento de grupos como o PCC e o CV como organizações criminosas é um grande avanço para o combate dessas facções, que tanto terror causam pelo Brasil afora, como já cansei de escrever e falar. O PL altera a redação do artigo 2º da Lei Antiterrorismo, que ficará assim:
“Art. 2º O terrorismo consiste na prática, por um ou mais indivíduos, dos atos previstos neste artigo, motivados por xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião ou para impor domínio ou controle de área territorial, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.
Sem dúvida enquadra como organizações terroristas o CV e outras facções que dominam territórios. Eu retiraria do texto a finalidade “de provocar terror social ou generalizado” para não haver discussão em processo criminal sobre o dolo do faccionado, bastando que sua intenção seja a de “impor domínio ou controle de área territorial”, o que, certamente, só pode ser obtido com a imposição de terror aos moradores da comunidade.
Também será alterada, caso aprovado o texto, a atual redação do inciso IV, do § 1º, do artigo 2º da Lei em comento, aumentando as hipóteses de configuração de terrorismo: A redação está redigida da seguinte forma:
“IV – apoderar-se, sabotar, inutilizar, total ou parcialmente, impedir ou interromper o funcionamento, ainda que de modo temporário, de infraestrutura crítica ou serviço de utilidade pública, mesmo que exercido por entidade privada, compreendendo, mas não se limitando a meio de comunicação ou de transporte; infraestrutura de telecomunicações; instalações de processamento de dados; portos; aeroportos; estações ferroviárias ou rodoviárias; hospitais; casas de saúde; escolas; estádios esportivos; instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais; instalações de geração, transmissão ou distribuição de energia; instalações militares; instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;”.
Assim, a interrupção de transporte público com incêndio a ônibus, v.g., pode ser considerado crime de terrorismo pelo dispositivo.
E o § 3º do artigo 2º diz expressamente que o disposto na presente lei se aplica às organizações criminosas e às milícias privadas que realizem um ou mais atos de terrorismo com o objetivo de retaliar políticas públicas, ou como forma de demonstrar domínio, controle social ou poder paralelo ao Estado em qualquer espaço territorial.
Esse dispositivo acabará com qualquer dúvida acerca da aplicação das normas de combate ao terrorismo a diversas organizações criminosas pelo Brasil, inclusive milícias privadas, notadamente as existentes nas comunidades do Rio de Janeiro e em muitas cidades do Nordeste brasileiro, que realizem atos de terror visando retaliar políticas públicas, ou para demonstrar domínio, controle social ou poder paralelo ao Estado em qualquer espaço territorial.
Se os atos de terror previstos na lei forem cometidos por meio de recurso cibernético, a pena será aumentada de 1/3 (§ 4º). Isso dar-se-á principalmente em atos de sabotagem contra instalações públicas e privadas de interesse público como instalações de geração, transmissão ou distribuição de energia; instalações militares; instituições bancárias e sua rede de atendimento (hackeamento).
Anoto que se for retirado do PL Antifacção a criação da organização criminosa qualificada, que engloba as facções que controlam territórios ou atividades econômicas por meio de violência ou intimidação, os demais dispositivos do PL seriam muito bem-vindos e poderiam ser aplicados à Lei Antiterrorismo. Ou seja, cria-se dispositivo que equipara as organizações criminosas como o PCC, CV e outros que dominam territórios e atividades econômicas nas comunidades a organizações terroristas, e aprova-se no PL Antifacção outros mecanismos de investigação e para asfixiar financeiramente as organizações criminosas, que serão aplicados às organizações terroristas.
Portanto, é possível conciliar os dois textos, dependendo apenas de vontade política e diálogo entre governo e oposição.
Ressalte-se que, se o PL Antifacção for aprovado após as alterações na Lei Antiterror, revogará tacitamente as disposições contrárias, inclusive a equiparação das facções a organizações terroristas, por se tratar de lei posterior mais benéfica aos criminosos em muitos aspectos.
Não obstante a inegável polarização política que passa o Brasil atual, basta boa vontade de todos os envolvidos na tramitação desses projetos, deixando de lado a ideologia e oportunismo político, para que se elabore um texto legal com a única finalidade de combater o crime organizado, que, em muitas situações, atua como organizações terroristas, dominando territórios e colocando em pânico a população local, que é obrigada a seguir suas regras, sob pena de violência extrema, inclusive a morte.
Enfim, o que o brasileiro de bem quer, independentemente de sua ideologia e predileção política, é que as Instituições funcionem para que possa viver em paz, com segurança e de forma digna.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.









