Na quarta-feira, dia 08 de outubro deste ano, poderá ser votado o projeto de lei da anistia, que provavelmente será apresentado pelo relator como readequação das penas. Ocorre que a mera individualização das penas com sua consequente redução — que já deveria ter sido realizada por ocasião da prolação do édito condenatório —, dificilmente será suficiente para acalmar os ânimos de parcela considerável da população. Isso se deve à intensa polarização política e ideológica existente no país, a qual pode, inclusive, gerar embates físicos e outras consequências imprevisíveis por ocasião das eleições do próximo ano.
Evidente que deverá ser apresentado pela oposição um substitutivo ou emendas visando que se vote a anistia ampla, geral e irrestrita até por critério de justiça.
Não há como negar que as penas aplicadas para os Atos de 8 de janeiro de 2023 foram absolutamente desproporcionais, superiores às de homicidas, traficantes, sequestradores e outros bandidos que infestam nossa sociedade, sem contar os corruptos confessos, que se encontram soltos e ainda tiveram valores devolvidos em razão de anulação de processos por vícios formais não verificados em três instâncias de julgamentos por unanimidade de votos.
Além do mais, para quem estuda e vive o direito, a acusação e condenação se deu por “por baciada”, sem a individualização das condutas de muitos dos condenados, não observando a teoria finalista da ação e aplicando o direito penal do inimigo, fatos já comentados por mim em diversos artigos que se encontram na Rede.
Digo o mesmo em relação aos acusados de serem os mandantes, idealizadores e fomentadores do suposto “golpe de Estado”, que, como cansei de escrever e falar, tudo ficou apenas no planejamento (se é que houve) e a vinculação com o quebra-quebra de 8 de janeiro só pode ser feita com muito malabarismo jurídico, já que a relação causal entre os atos cometidos meses ou mesmo anos antes e o vandalismo é muito difícil, senão impossível, de ser enxergada.
Não vou ingressar a fundo no mérito do que seja a anistia, mas apenas tecer alguns breves comentários sobre o instituto.
Cuida-se de uma forma de perdão concedido por lei do Congresso Nacional motivada por razões políticas ou por espírito de humanidade. Ela faz com que o crime desapareça e enseja a extinção da punibilidade do beneficiado, isto é, o Estado perde o direito de punir determinado fato, mas o tipo penal continua em vigor.
Com o devido respeito aos que assim entendem, não há nenhuma norma constitucional ou legal que impeça a anistia para este caso, exceto se forem realizados malabarismos jurídicos para dar uma interpretação extremamente elástica a princípios constitucionais e chegarem à conclusão de que o benefício feriria alguma norma constitucional.
Não é dado ao STF discutir o mérito da anistia, isto é, se os beneficiados são ou não merecedores do ato de clemência.
Essa decisão é do Parlamento por se tratar de modalidade de perdão existente desde os tempos mais antigos.
Não se pode presumir que a anistia levaria à repetição de atos semelhantes. A meu ver, o que ocorreu não passou de uma desnecessária e ilegal baderna que saiu do controle, possivelmente instigada por agentes que provocaram um efeito manada e criaram uma turba enfurecida, responsável por um quebra-quebra. Esses fatos são passíveis de punição por crime de dano ao patrimônio público e ao patrimônio especialmente protegido, mas apenas para aqueles que efetivamente participaram do vandalismo — não para os que nada fizeram e apenas estavam no local, mas que, ainda assim, acabaram condenados de maneira totalmente injusta.
Cuida-se de premissa falsa.
Primeiro, porque o perdão está sendo concedido justamente para tentar serenar os ânimos por conta de condenações consideradas injustas por parcela expressiva da população e da classe política.
Segundo, porque se a Suprema Corte pode conjecturar ser a anistia um incentivo a prática de novos atos semelhantes, também podemos fazê-lo no sentido contrário, de que os ânimos seriam acalmados por conta de prisões injustas derivadas de processos absolutamente nulos em razão da incompetência da Excelsa Corte, da ausência de individualização das condutas, sonegação de provas (filmagens que desapareceram), violação à ampla defesa e ao contraditório (para alguns condenados) e penas absolutamente desproporcionais.
A anistia, justamente por ser uma espécie de perdão do soberano, é dirigida a pessoas determinadas, que praticaram um ato ilícito. Não, há dessa forma, violação ao princípio da impessoalidade, justamente por ter a natureza de perdão dirigido a fatos certos e determinados, que, fatalmente, beneficiará pessoas certas e determinadas que neles se enquadrem.
Trata-se de uma decisão política e, por isso, só cabe ao Poder Judiciário declarar judicialmente o direito, desde que preenchidos os requisitos legais, julgando extinta a punibilidade dos beneficiados, e nada mais.
Não é dado à Excelsa Corte criar empecilhos constitucionais ou legais não previstos em nosso sistema jurídico para a concessão da anistia, mas apenas analisar os já existentes, que não vedam o perdão aos crimes pelos quais os manifestantes foram acusados ou condenados.
Se a intenção do Constituinte originário fosse a de vedar a anistia para essas espécies de delitos o teria feito expressamente. Até mesmo o legislador, ao criar os crimes contra o Estado Democrático de Direito por meio de lei, poderia tê-los inserido no rol dos crimes hediondos ou equiparados, previsto na Lei nº 8.072/1990, o que ensejaria a vedação ao perdão, mas não o fez, o que nos leva à conclusão de que o benefício foi permitido por ele, talvez por ser um crime político e permitir o perdão político.
Anoto que o dispositivo citado comumente por juristas, políticos e jornalistas que vedaria a anistia — ou outra espécie de perdão soberano — a ela não se refere, apenas dizendo serem imprescritíveis e insuscetíveis de fiança a ação de grupos armados, civis ou militares, contra o Estado Democrático de Direito e a ordem constitucional (art. 5º XLIV, da CF). Vejam o que diz o dispositivo:
“XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Por outro lado, logo acima — no inciso XLIII do dispositivo constitucional —, a própria Magna Carta, aí sim, veda expressamente a concessão do perdão soberano (anistia, graça e indulto) aos autores de crimes hediondos e equiparados. Entre esses, não se enquadram os crimes de associação criminosa (ou organização criminosa), golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, bem como os crimes de dano (qualificado e contra o patrimônio histórico) pelos quais foram condenados os participantes dos atos de 8 de janeiro. Dispõe a aludida norma constitucional:
“XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;”.
Ora, se o Constituinte resolveu não vedar qualquer espécie de perdão soberano — dentre eles a anistia —, a determinados delitos, não cabe ao intérprete fazê-lo, lembrando que se trata de direito fundamental, o que pressupõe ser interpretado da forma mais ampla possível em favor do favorecido e nunca o contrário.
E, tudo o que a lei não veda para o indivíduo, é permitido. É o que dispõe expressamente o princípio da legalidade (em sentido amplo), esculpido no inciso II, do artigo 5º, da Constituição da República:
“II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”.
Resumidamente, se a Carta Constitucional não veda a anistia para determinados crimes, ela é permitida. Contrário senso, não são suscetíveis de anistia apenas os delitos expressamente proibidos pela Constituição Federal, quais sejam: os hediondos, tráfico de drogas, terrorismo e tortura — sendo certo que nenhum dos condenados está incurso em um desses delitos.
Obviamente, perdoados os manifestantes, do mesmo modo devem ser perdoados os integrantes do governo do então presidente Bolsonaro, bem como ele próprio, que foram condenados (ainda não definitivamente) como idealizadores e incentivadores daqueles atos.
Cada Poder da República tem na Constituição as regras de sua competência, que limitarão sua atuação, justamente para não haver a invasão de um ao outro, exceto naqueles casos taxativamente expressos no texto constitucional em que são exercidos os freios e contrapesos, isto é, a fiscalização recíproca; do contrário, ocorre a violação de um dos princípios básicos do todo país democrático, a independência dos Poderes, que devem ser harmônicos e coerentes, o que deixa de existir quando um deles toma para si atribuição do outro sem autorização constitucional.
Outra questão que certamente será alvo de debates no caso de ser aprovada no Congresso Nacional, por se tratar de lei, deve ser sancionada ou vetada pelo Presidente da República, que poderá agir politicamente. E, neste caso, mesmo que vetada, o veto pode ser derrubado pelos Parlamentares pela maioria absoluta de seus membros em cada Casa, ou seja, 257 votos de Deputados e 41 votos de Senadores, computados separadamente. Registrada uma quantidade inferior de votos pela rejeição em umas das Casas, o veto é mantido (art. 66, § 4º, CF e art. 43 do RCCN).
Enfim, a anistia seria uma forma de restabelecer a justiça, posto que as punições aplicadas aos participantes daquele quebra-quebra já foram mais do que suficientes e o recado já foi dado no sentido de que atitudes daquele tipo não serão aceitas e exemplarmente punidas, muito embora, no meu modo de ver, absolutamente desproporcionais.
Sobre a definição e requisitos da anistia, vide artigo constante do link abaixo:
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.