Quando pensamos em ditadura logo nos vem à mente um governo que em apenas uma pessoa ou grupo de pessoas estão concentrados os três Poderes. Na forma, é um governo democrático, mas na prática não é bem assim que ocorre.
Normalmente, a ditadura é imposta pelo Poder Executivo, que controla as Forças Armadas, e o regime é mantido à força, ficando os demais Poderes submissos e a população acuada, que não pode livremente escolher quem a governará e o prazo que isso dar-se-á.
No entanto, em terras brasileiras, não é bem assim. Atualmente, a ditadura não é imposta pelo Poder Executivo, mas pelo Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal, que, na prática, não é submetido a nenhum tipo de controle.
O artigo 2º da Constituição Federal dispõe sobre o princípio da separação dos Poderes da República: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Na célebre definição de Montesquieu, o Poder Executivo é responsável por administrar o Estado, o Legislativo por criar as leis e o Judiciário por aplicar o direito, de modo que sejam independentes e harmônicos entre si. Essa repartição de poderes está presente em todos os países democráticos.
No Brasil, criou-se uma forma de ditadura, não imposta pela força, mas pelo direito, a pretexto de se interpretar a Constituição Federal, já que a palavra final é da Suprema Corte, não havendo a quem recorrer.
Tal distorção na seara do direito recebe o nome de ativismo judicial, ou seja, o Poder Judiciário se arvorando na função de legislar e de administrar o país, interpretando as normas como bem lhe aprouver, mesmo que afrontando a Constituição Federal, que tem o dever de proteger.
São muitos os episódios em que isso ocorreu e vou citar os mais emblemáticos.
O primeiro foi criação de norma penal incriminadora por meio de decisão judicial, no caso da homofobia. O princípio da legalidade (ou da reserva legal) está contido no art. 1º do Código Penal e art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, dizendo expressamente que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Por esse princípio, presente no sistema jurídico de praticamente todos os países, somente poderá ser imposta sanção penal ao infrator desde que exista lei anterior tipificando a conduta como infração penal.
Qualquer aluno de direito conhece esse princípio, que foi sepultado pela Excelsa Corte, e já há pessoas acusadas e condenadas por este delito, que não possui previsão legal, sendo criado por analogia “in malam partem”, proibida pelo Direito, vez que somente pode ser aplicada em favor do acusado e nunca contra ele.
Outra, no mínimo inusitada, foi ter sido baixada portaria pelo presidente do STF, indicando ministro certo, sem nenhuma distribuição, para apurar crimes indeterminados: honra, ameaça e de denunciação caluniosa cometidos contra a Corte e seus Ministros de forma generalizada, bem como a propagação das chamadas “fake news” (notícias falsas).
Foi criada pela portaria prerrogativa de foro pela qualidade das vítimas, o que não há em nosso sistema jurídico. A prerrogativa de foro existe para proteger aquele que ocupa um cargo público de relevância quando investigado ou acusado da prática de infração penal, e não quando é vítima de um delito, sendo que neste caso o processo ou procedimento devem seguir a regra geral de competência e tramitar na primeira instância (juiz federal ou de direito).
Mas não é só. Foi ferido de morte o sistema acusatório de processo em que há nítida divisão entre o órgão acusador e julgador para que seja mantida a isenção necessária daquele que dará a palavra final ao processo. E pior, são as próprias vítimas que estão investigando os crimes supostamente cometidos contra si. Isso sem contar que este inquérito, aberto até hoje, vai investigando fatos à conta-gotas na medida em que forem surgindo. E deste procedimento surgiram outros, que até mesmo produziram investigações secretas, de modo que os advogados não tiveram acesso a todas as provas ou ele foi sensivelmente dificultado.
Desse fato esdrúxulo decorreram muitos outros que aos poucos foram surgindo durante o trâmite dessa famigerada investigação. Difícil foi explicar o ocorrido para meus alunos de direito, que podem achar que os estou ensinando errado.
Não cabe à Suprema Corte implementar políticas públicas e invadir competência discricionária do Governo Federal, cujo representante máximo foi eleito para tanto. A gestão da pandemia pelos Estados, contrariando lei expressa que dava ao governo federal essa atribuição de forma geral, bem como a própria Constituição Federal, que determina caber à União instituir as regras gerais na gestão da saúde, é um dos exemplos marcantes de ativismo judicial.
Outro exemplo notório foi a cassação da nomeação do diretor da Polícia Federal, Alexandre Ramagem, de competência exclusiva do presidente da República, no mandato do então presidente Bolsonaro.
Na área da segurança pública, cuja competência é, em regra, dos Estados, o Pretório Excelso chegou a proibir operações policiais regulares nas comunidades do Rio de Janeiro, limitando-as a situações excepcionais, atividade típicados órgãos de segurança pública estaduais e não de magistrados, sem praticamente nenhum conhecimento sobre o tema.
Há, também, julgamentos de processos em andamento que pretendem a liberação do aborto até determinado mês de gestação e do consumo de drogas, matériasque devem ser discutidas e apreciadas pelos representantes do povo eleitos para essa finalidade.
O mesmo pode ser dito acerca da regulação das redes sociais, o que a Excelsa Corte pretende fazer, tema que pode implicar censura, expressamente vedada pela Constituição Federal. No máximo, alguns aspectos relacionados a questões que não afetem a liberdade de expressão e manifestação do pensamento poderiam ser reguladas, mas por meio de lei federal e nunca por decisão judicial, posto que o assunto é complexo e demanda profunda discussão pela sociedade, pois afetará diretamente a vida de praticamente toda a população. Anoto que o Congresso Nacional está a discutir o tema, não havendo omissão a esse respeito, mas profunda análise para que uma legislação adequada seja criada.
Atitudes deste tipo colocam em risco a própria democracia, uma vez que ferem a harmonia entre os Poderes da República, levando muitas vezes a sérias crises institucionais, que são resolvidas pelo próprio Poder Judiciário, que dá a última palavra e não há a quem recorrer.
Concluo, portanto, afirmando que a ditadura tanto pode ter como protagonista o Poder Executivo, que é o usual, mas também pode ser imposta pelo Poder Judiciário, quando indevida e reiteradamente invade a competência dos demais poderes sem que nada possa ser feito.