.6.1 Doação de presentes e bens a chefe de Poder e altas autoridades
Introdução. Em viagens ao exterior os ex-presidentes e altas autoridades governamentais normalmente recebem presentes. Faz parte das gentilezas e formalidades que cercam o relacionamento diplomático. Ao recebê-los os dignitários estrangeiros deixam-nos para serem expostos em museus. Os presidentes e primeiros ministrosprimeiros-ministros sentem-se na obrigação de entendê-los como doações ao país que representam. Jamais se apropriam dos objetos ganhos.
Na Malásia, a Galeria Perdana instituída por Tur Mahathir Mohamad, em 1995, contém todos os objetos doados aos representantes políticos do país. É documentação da História viva.
De igual maneira, em Belgrado, na Sérvia, todos os bens recebidos por Josef Bros Tito, que dirigiu a antiga Iugoslávia, se encontram expostos em uma galeria ao lado de seu memorial.
São exemplos que, infelizmente, não são seguidos por outros países, tal como o nosso.
No Brasil não consta que algum dos representantes políticos tenha deixado alguma coisa em prol do patrimônio público. AÉ que há uma cultura de confundeir o público ecom o privado.
Quando representantes brasileiros se dirigem ao estrangeiro em visita oficial, é praxe que recebam presentes dos chefes de Estado. Normalmente são lembranças caras, obras de arte que se destinam não a agradar o governante que as recebe, mas ao Estado que ele representa.
Façamos uma análise de que tipo de ingresso é este e até que ponto pode o governo brasileiro exigir dos agentes políticos que terminam o exercício de seus mandatos, a devolução das doações recebidas.
Em primeiro lugar, de se afirmar que se trata de uma entrada, ou seja, ingresso de um bem no patrimônio público. Depois, asseverar que se cuida de receita, ou seja, entrada em caráter definitivo. Em seguida, impõe-se deslindar se o ingresso se dá em benefício pessoal do governante ou o presente (doação) é ofertado ao Estado, momentaneamente representado (melhor dito, presentado) pelo agente político.
Assenta-se que, em princípio, o ingresso é dado ao mandatário no exercício de mandato político. Logo, a homenagem do país estrangeiro é ao Estado visitante. Não a seu representante. É a pessoa jurídica que é aquinhoada; não a pessoa física do mandatário.
Tão logo haja o recebimento da doação (presente) ao presidente ou a ministro de Estado, a oferta é ao país, e, pois, o bem móvel se traduz em receita. Sabidamente ela pode consistir em dinheiro ou bens. Todos identificam valores patrimoniais. A partir daí é que se pode analisar o problema.
Identificação do bem. Todos os bens que não forem dados em caráter pessoal (exemplo: roupas, cigarro etc.) são bens públicos e inapropriáveis pelo agente político.
O chefe do Executivo, quando visita país estrangeiro, não o faz em seu nome, mas em representação diplomática do Estado. Obras de arte, tapetes, esculturas, pinturas, veículos, animais etc. integram, a partir de sua entrega, o patrimônio do Estado. Se o chefe do Executivo, ao terminar seu mandato, os retira do prédio público, comete o crime de apropriação indébita. Além de poder ser responsabilizado criminalmente, sofre as consequências de ser obrigado a devolver os bens ou sofrer condenação em processo civil de reparação de danos.
É muito comum que o governante confunda o patrimônio público com o seu, particular. É que o espírito público ainda não tomou conta do gestore público. Pensa que pelo fato de ter sido eleito ou sucedido o governante passa a ser “dono” da res publica.
O espírito público, tão caro em alguns países, ou pelo menos a alguns governantes, não pode ser tido como a regra nas modernas democracias latino-americanas. Os governantes se apropriam dos objetos ganhos em viagens ao exterior sem se importar ou sem ter a consciência de que pertencem ao Estado.
A Procuradoria-Geral da União e seus correspondentes nos Estados devem ingressar com ações para exigir dos ex-mandatários os objetos recebidos de governantes estrangeiros ou de outros Estados brasileiros que compõem o patrimônio cultural brasileiro. É também questão moral. Ocorre que os ingressos públicos independem de lei que assim determine. Basta que sejam entregues a representantes (agentes políticos), que as doações passam a integrar o ativo do Estado.
A doação tem seu figurino normativo traçado pelos arts. 538 a 564 do CC. Vem definida como “contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra” (art. 538).
Tal definição cuida da doação no direito privado. No direito público não há o caráter de contrato. Não se celebra um contrato (escrito ou verbal) entre as partes. São dois Estados. Ainda que o ente político federativo possa celebrar contrato, não é disso que se cuida. Um Estado, por liberalidade e pretendendo homenagear o outro, entrega um bem ao visitante estrangeiro. Há a transferência de propriedade ou posse de um bem.
Homenagem ao Estado. Há uma homenagem. A quem? Ao Estado ou à pessoa física do agente político? Indisputavelmente, cuidando-se de um objeto de valor, ele integra o patrimônio público.
As doações caracterizam-se como receitas originárias, isto é, não sãoou seja, não se trata de entradas decorrentes de receitas tributárias. AComo já esclarecemos no item 9.5, as receitas originárias decorrem de relação de direito privado ou público disponível.
O que se assiste, hoje, é reminiscência de passado remoto em que a pessoa do príncipe se confundia com a do Estado. Outrora, o aerarium cabia ao Senado e o fiscus integrava o patrimônio do príncipe. Diz Sainz de Bujanda que “lo grave fue que los recursos del Estado Romano se confundieron con la fortuna particular del Emperador, y que éste se acostumbró a manejar los caudales públicos como cosa de su pertenencia”.
À época em que os costumes eram outros e que o que valia era a lei da espada, que sustentava o poderoso Império Romano, a confusão aerarium/fiscus era possível. O Imperador sentia-se dono do Erário.
Na Idade Média podemos aceitar que os reis e imperadores ainda se apropriavam do público. Na estrutura hierarquizada da sociedade de então até que se podia admitir a apropriação do público pelo privado.
Com o advento das modernas democracias o sentido do Estado adquire caráter ético. Outrora o vínculo ético-jurídico que ligava o indivíduo ao Estado podia ser rompido pela voluntas do Imperador. O Estado Moderno rejeita o despotismo, ainda que esclarecido. As decisões passam a ser tomadas pela maioria, e a coisa pública adquire significado mais complexo. Não se exaure na soma dos interesses particulares, mas busca a orientação finalista do Estado. Identifica-se com o sentimento prevalecente dos interesses individuais. Os indivíduos, como membros de uma sociedade, manifestam sentimentos que correspondem aos da maioria.
Desaparece a voluntas do Imperador e nasce o interesse de uma coletividade que se retrata da comunhão da sociedade. Esta, então, rejeita a prevalência da vontade régia. O Estado e o interesse da sociedade estão acima da prevalência de uma vontade individual, por mais qualificada que seja pelo ordenamento jurídico.
Interesse público e interesse social, aqui, se misturam, tornando-se uma só coisa. A prevalência do todo, que é maior que a soma das partes. Como diz Fábio Konder Comparato, “o bem comum republicano, no quadro da legitimidade política moderna, aponta sempre para o futuro. A República preserva os bons valores e as boas instituições já existentes na sociedade, mas procura sempre transformá-las em função de certos objetivos considerados fundamentais. O espírito republicano é uma exigência permanente de aperfeiçoamento ético da sociedade”. 1
Vê-se que o mundo sofre transformação permanente. De um início de desconhecimento com o público à prevalência deste, que ainda precisa ser aperfeiçoada.
De qualquer maneira, a Lei nº 8.394, de 30.12.1991, dispôs sobre os “acervos documentais privados” do Presidente da República. Integram o “patrimônio cultural brasileiro” (art. 3º). Mas não é disso que se trata. Aqui, cuida a lei de documentos, isto é, textos, livros, cartas, correspondência, instrumentos de sua realização (máquinas etc.).
O objetivo do trabalho é outro. No texto, cuida-se de dados biográficos, bibliográficos, manuscritos, fotográficos, filmográficos, videográficos, cartográficos, fitas eletromagnéticas etc.
O Decreto nº 4.344/2002, ao disciplinar a lei, acrescenta, no art. 3º, que os acervos documentais privados do Presidente da República incluem também “obras de arte e objetos tridimensionais”. O decreto excluiu documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de “troca de presentes” nas audiências com chefes de Estado e de governo por ocasião das visitas oficiais.
Daí a distinção a se fazer entre os objetos recebidos em âmbito pessoal, que são disciplinados pela Lei nº 8.394/1991 e que constituem “acervos documentais privados” do Presidente da República, mas que integram o “patrimônio cultural brasileiro”, dos presentes recebidos em audiência pública de troca de presentes, que integram não o acervo documental privado, mas o patrimônio público. Na hipótese de apropriação por parte do Presidente de tais objetos recebidos, tipificado está o crime.
O Código de Ética dos Agentes Públicos em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República (Decreto nº 4.081/2002) igualmente estabelece a conduta que deve ter o agente político. Pautar-se de acordo com os princípios da moral e da razão. O aético não é o recebimento de presentes. É sua apropriação.
Os bens recebidos não pertencem ao Chefe de Estado, mas ao país. Todo e qualquer objeto de valor que seja entregue a Presidente da República passa a integrar o patrimônio público, sendo indisponível para qualquer agente apropriar-se dele. Mais do que todos, o chefe de Estado tem que dar o exemplo de desprendimento e de estrito cumprimento às leis. Obras de valor (de arte, tais como pinturas, esculturas, históricas, reprodução delas etc.) que sejam entregues ao agente político em razão de seu cargo a ele não pertencem, mas ao Poder Público. 2
Sendo assim, os objetos doados em audiência de troca de presentes vêm, imediatamente, a integrar o patrimônio público, constituindo-se em receita pública originária. Tombados, passam a constituir o patrimônio cultural do país.
Se o chefe de Estado deles se apropria, comete crime e infração administrativa. Improbidade administrativa é o mínimo que se pode dizer em face de conduta tão reprovável.
- OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 9. ed. São Paulo: RT, 2015, item 9.5.
BUJANDA, Sainz de. Hacienda y Derecho. v. I. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1961, p. 168.
↩︎ - COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 3. ed.. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p. 622. ↩︎