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Política

O que explicará o inexplicável? Por Janaina Conceição Paschoal

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Durante meu mandato como Deputada Estadual em São Paulo, dentre os vários projetos apresentados, propus o de número 650/22, que estabelece em 12 (doze) semanas o limite temporal para a interrupção de gestação decorrente de estupro[1].

Ao final do mandato, todos os demais projetos de minha autoria foram adotados por colegas reeleitos, o PL 650/22, no entanto, ficou órfão e foi arquivado[2].

Os Deputados defensores da legalização do aborto não apoiaram o projeto por razões óbvias. Já os Parlamentares alinhados com a assim chamada pauta pró-vida, muito embora reservadamente tenham reconhecido a importância da limitação proposta, preferiram não dar margem a críticas e abandonos de sua própria base, que insiste no discurso do tudo ou nada[3].

O projeto em referência foi apresentado durante o Governo Bolsonaro, que referendou normativas anteriores, estabelecendo em 22 (vinte e duas) semanas o limite temporal para a interrupção da gravidez decorrente de estupro, DEZ semanas além das doze propostas à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

Alguns casos ganharam repercussão. Em um deles, a médica se negou a encerrar uma gestação de mais de seis meses, o Ministério Público acionou a Justiça, que determinou a realização do procedimento e a profissional foi obrigada a cumprir a determinação judicial.

Juízes, promotores, defensores públicos, advogados e professores de Direito, na tranquilidade de suas salas de trabalho, não dimensionam o que implica uma equipe de saúde ser obrigada a “interromper” gestações de “fetos” de seis, sete, oito, ou mesmo nove meses. Trata-se de bebês prontos, que precisam, literalmente, ser executados, pois os métodos cabíveis no início da gestação não são mais efetivos nessa fase.

Logo no começo do Governo Lula, o Ministério da Saúde revogou aquele limite de 22 semanas, passando a autorizar a interrupção de gestações decorrentes de estupro até a fase final da gravidez.

A fim de resguardar os médicos de ordens judiciais absolutamente incompatíveis com a ética, por meio da Resolução 2378/24, o Conselho Federal de Medicina proibiu o procedimento de assistolia fetal, consistente em injetar substâncias como o cloreto de potássio no feto, causando um ataque cardíaco . De tão dolorido, esse tipo de “método” é vedado até para a eutanásia de animais e para a execução da pena de morte, nos países que a admitem.

Não obstante, os formadores de opinião correram para bradar que os direitos das mulheres estariam sendo cerceados, como se dentre os fetos vitimados não houvesse pessoas do sexo feminino. Enquanto os ataques foram muitos e ferrenhos, a defesa da Resolução foi tímida, justamente em razão do policiamento daqueles que vislumbram pecado em diferenciar as várias fases de desenvolvimento da vida humana, ainda que seja para salvá-la e não para ceifar.

Pois bem, em 18 (dezoito) de abril do ano corrente, estive na instalação da Frente Parlamentar Mista pela Vida. Pude ouvir grande parte dos palestrastes pela manhã e, no período vespertino, tive a honra de participar como oradora.

Na oportunidade, alertei para os riscos de os ativistas da causa pró-vida, religiosos ou não, ao buscarem a proteção absoluta e irrestrita da vida intra-uterina, deixarem de salvar aquelas passíveis de serem salvas.

Chamei atenção para a necessidade de perseguir “denominadores comuns”. Como metodologia, sugeri apoiar todas as medidas que avancem, ainda que alguns passos, na proteção da vida e, por conseguinte, refrear aquelas que impliquem rumar no sentido do alargamento da prática do aborto.

Fui muito dura com aqueles que seguiam atacando o Conselho Federal de Medicina, insistindo no mantra de que vida é vida, sem qualquer distinção do tempo de gestação. Coincidência ou não, no final daquele mesmo dia, uma decisão judicial suspendeu, liminarmente, a vigência da Resolução em epígrafe.

É bem verdade que tal suspensão foi revertida, entretanto, a discussão segue no Poder Judiciário e, diante da força daqueles que repetem o discurso vazio de que os direitos das mulheres estariam sendo desrespeitados, o apoio dos defensores da vida se mostra essencial, sendo certo que argumentos não faltam para tal defesa. Vejamos.

Os detratores da Resolução do CFM se apegam ao fato de o Código Penal, em seu art. 128, não estabelecer limite temporal, ao prever que a interrupção da gestação decorrente de estupro não é punida, quando praticada por médico.

Como operadora e professora de Direito, posso garantir que, no âmbito penal, interrupções de gestações maduras sequer são discutidas, por ser inimaginável um médico matar um ser humano pronto. Em outras palavras, a ausência de punição não significa que as interrupções estariam autorizadas em qualquer momento da gravidez.

A esse respeito, vale mencionar que quando o bebê falece pouco antes do nascimento, por negligência ou imperícia da equipe de saúde, se avalia a incidência do tipo penal do homicídio, justamente por se tratar de um ser apto a viver fora do corpo da gestante. O debate é complexo e não pode ser simplificado como os ativistas estão fazendo em matérias de jornais, que só ouvem um lado.

Ademais, apesar de a lei não trazer um limite temporal claro à interrupção da gravidez decorrente de estupro, fato é que, toda a prática judicial foi paulatinamente alterada para possibilitar que tais gestações fossem interrompidas logo no início, não só pela dignidade do feto, mas para preservar a própria mulher dos riscos do procedimento.

Com efeito, nos idos dos anos 90, a interrupção da gravidez decorrente de estupro somente era possível se houvesse uma decisão judicial autorizando, não sendo raros os casos de o procedimento restar inviabilizado justamente pela demora na decisão, que era precedida de uma demonstração, ainda que preliminar, da real existência do crime sexual.

Depois de intensos debates doutrinários e jurisprudências, destacando que o avançar da gravidez faz avançar também os riscos em sua interrupção, essa exigência de autorização judicial foi abandonada, solicitando-se apenas a lavratura de Boletim de Ocorrência. Com o tempo, também esse requisito caiu por terra, com o fim de não criar constrangimentos à vítima, cuja palavra passou a bastar para o acesso à interrupção da gravidez.

Ora, diante desse quadro, não há sentido em deixar para procurar o serviço de saúde em fases mais avançadas de gestação, restando ainda mais justificada a Resolução do Conselho Federal de Medicina.

A esse respeito, imperioso consignar que mesmo os países que admitem o aborto de maneira mais ampla limitam o procedimento a períodos inferiores àquele previsto pelo Conselho Federal de Medicina; em regra, 12 (doze), 14 (quatorze), no máximo 16 (dezesseis) semanas.
Até mesmo a ADPF 442, proposta pelo PSOL, pleiteia a legalização do aborto até as 12 (doze) semanas de gestação.

Nesse contexto, chega a causar estranheza essa gritaria toda para viabilizar interromper a gravidez de bebês prontos para nascer! Haveria algum interesse maior nisso?

Também causa estranheza o fato daqueles que se proclamam defensores dos direitos das mulheres estupradas não moverem um dedo para garantir a investigação dos agressores sexuais, em atitude absolutamente incompatível com a desposada pelos mesmos grupos relativamente à violência doméstica.

De fato, no que concerne às lesões corporais, ainda que leves, perpetradas no âmbito doméstico e familiar, prevalece o entendimento de que o sistema repressivo deve ser acionado, ainda que a vítima se manifeste em sentido contrário. Já, no que tange aos crimes sexuais, apesar de a ação penal ser pública incondicionada, insiste-se no discurso de que cabe à vítima decidir, ainda que seja menor de 14 anos e, por conseguinte, se esteja diante de um estupro de vulnerável.

Em outras palavras, meninas engravidam de homens adultos, alguns de seu ciclo de relacionamento, procuram o sistema de saúde, abortam e voltam para o mesmo ambiente, para sofrer novos estupros, engravidar e fazer novos abortos, sob o silêncio ensurdecedor de seus pretensos defensores.

Objetivando fazer frente a esse estado de coisas, também à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, apresentei o projeto de lei 582/2020 , que determina que as interrupções de gestações decorrentes de estupro sejam noticiadas à polícia, para viabilizar a apuração do crime praticado contra a mulher, inclusive com resguardo dos restos fetais e outros vestígios para fins de perícia genética.

Na exposição de motivos, alicercei a propositura nas Leis 13.718/18 e 13.931/19.
A Lei 13.718/18 alterou o artigo 225 do Código Penal, tornando pública incondicionada a natureza da ação penal nos crimes contra a dignidade e a liberdade sexual, sendo certo que todo o sistema jurídico vai no sentido de orientar os profissionais de saúde a notificarem crimes processáveis mediante ação penal pública incondicionada. Igualmente, a Lei 13.931/19 é taxativa ao obrigar o profissional da área de saúde a notificar situações de provável violência contra a mulher .

A fim de conferir à mulher vítima a segurança de que a notificação compulsória não poderá virar em seu desfavor, caso as autoridades competentes não consigam provar nem a materialidade delitiva nem a autoria delitiva relativamente ao estupro, fiz questão de prever que a ausência de provas do estupro, ou de quem seja seu autor, não implicaria responsabilização da mulher por aborto, ou por falsa comunicação de crime.

Quem tem experiência na seara penal bem sabe que os crimes sexuais são difíceis de serem provados. Não raras vezes, o fato ocorre em ambiente sem testemunhas. Infelizmente, com frequência, a vítima é acusada pelo agressor. Não seria, portanto, justo deixar de estabelecer essa cláusula de proteção à mulher vítima.

Pois bem, apesar de todo esse cuidado, os defensores do aborto se levantaram contra o projeto, que segue em trâmite, por ter sido abraçado pela Deputada Letícia Aguiar.

Se o sistema de Saúde e de Justiça viabiliza interromper a gestação decorrente de estupro logo no início, por que os “defensores das mulheres” querem que sigam sendo submetidas ao risco de um procedimento tardio? Se são mesmo defensores das mulheres, por qual razão se negam a apoiar uma apuração automática dos crimes graves por elas suportados? Esses abortos tardios, doloridos e arriscados parecem ter se tornado um fim em si mesmos. Inexplicável! Na melhor das hipóteses, inexplicável!

Por incrível que pareça, esse segundo projeto também sofreu resistência de alguns defensores da vida, salvo melhor juízo, o simples ato de falar dos abortos permitidos por lei (ainda que para restringir) trai a sua causa. Em resumo, como vem ocorrendo com o Conselho Federal de Medicina, apanhei (e apanho) de gregos e troianos.

Fica muito difícil avançar, seja no sentido de poupar a vida de fetos maduros, seja no sentido de responsabilizar agressores sexuais que, dentre outros males, submetem mulheres à dor de uma interrupção de gestação.

Nessas e em outras pautas, precisamos urgentemente encontrar o caminho do meio, ou cada grupo seguirá seu monólogo, pregando para convertidos. Vencerá o mais forte, perderão a vida e a dignidade humana.

Entre a luta cega pela morte e a luta cega pela vida, padecem fetos prontos para nascer e mulheres indefesas, sacrificadas entre estupros e abortos impostos por um sistema que se esconde sob a falsa bandeira de protetor.

[1] – “Artigo 1º. No Estado de São Paulo, interrupções de gestações decorrentes de estupro não serão realizadas após o limite de 12 (doze) semanas de gestação.

§ 1º. Para fins do disposto nesta lei, a estimativa da idade gestacional será calculada, sempre que possível, por ultrassonografia e, na impossibilidade de realização célere do exame, pela data da última menstruação combinada com análise clínica.

§ 2º. A gestante será informada acerca do procedimento e seus riscos, bem como sobre a possibilidade de entregar o bebê para adoção, não sofrendo pressões nem para interromper nem para manter a gestação”.

2 – conferir em:  https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000481297

3 – Para que compreendam, quando o projeto foi publicado, passei a receber mensagens de pessoas que diziam orar por mim, haja vista o erro que estava cometendo, na medida em que não haveria diferenças entre um dia de vida, 12 semanas, 9 meses, etc.


4 – https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2024/2378

5 – Conferir em: https://www.feis.unesp.br/Home/comissaodeeticaeusoanimal/resolucao-1000-11-05-2012–cfmv_-eutanasia.pdf e https://www.cfmv.gov.br/wp-content/uploads/2022/06/NotaTecnicaCNSPV.pdf

6 – https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000335519

7 – Artigo 1º. No Estado de São Paulo, quando um profissional de saúde interromper uma gestação por ser decorrente de estupro, notificará a autoridade policial, para que o autor do crime seja identificado e responsabilizado, nos termos da legislação vigente no País.

Parágrafo Único. A fim de possibilitar a perícia genética, tecidos embrionários ou fetais serão preservados.

Artigo 2º. A mulher não será pressionada nem a interromper, nem a não interromper a gestação.

Parágrafo Único. A mulher será informada sobre o procedimento e seus riscos, bem como acerca da possibilidade de entregar o bebê para adoção.

Artigo 3º. Uma vez instaurado inquérito policial pelo estupro noticiado, posterior arquivamento não implicará automática responsabilização da mulher por aborto ou por falsa comunicação de crime.

Parágrafo Único. Igualmente, uma vez instaurada ação penal pelo estupro noticiado, posterior absolvição por ausência de provas da autoria delitiva ou da materialidade delitiva não implicará responsabilizar a mulher por aborto ou por falsa comunicação de crime.

8 – “Artigo 1º. Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados.

(…)

Parágrafo 4º. Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíves e para fins estatísticos”.

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