Há anos os especialistas abandonaram a ideia de que os transtornos mentais são derivados exclusivamente de problemas da mente e/ou comportamentais e passaram também a entendê-los como uma patologia ou doença que atinge o cérebro durante o seu desenvolvimento e maturação.
Hoje está consolidado o entendimento que as condições familiares, sociais, psicológicas, econômicas e culturais em que vive o indivíduo interagem com fatores genéticos, igualmente importantes, para que os transtornos psiquiátricos possam surgir ou mesmo se agravar. Assim as agressões físicas, psicológicas e situações conflitantes vividas numa fase precoce da vida, associadas à existência de genes predisponentes, poderiam provocar o aparecimento e desenvolvimento desses transtornos mesmo antes da idade adulta.
Em reportagem de Felipe Floresti e Ricardo Zorzetto recentemente publicada na revista Pesquisa FAPESP no.335, são apresentados os resultados de uma pesquisa realizada por um grupo internacional, liderada pelo psiquiatra brasileiro Christian Kieling da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRG), que a partir de dados de 159 países coletados de 1990 a 2019, avaliou a proporção de pessoas no mundo que potencialmente apresentavam ao menos um transtorno mental nas fases iniciais da vida, dos 5 aos 24 anos, período em que mais cresce a ocorrência dos casos em função da idade.
Em 2019, 293 milhões de pessoas dessa faixa etária tinham sintomas compatíveis com algum dos 11 problemas psiquiátricos avaliados – dos mais comuns como ansiedade e depressão, aos mais raros como a esquizofrenia. Publicado em janeiro na revista médica JAMA Psychiatry, esse número correspondia a 11,6 % da população mundial entre 5 e 24 anos, que na época era de 2,52 bilhões de indivíduos.
Estudos anteriores estimavam em 13,1% a frequência de problemas psiquiátricos na infância, mas estes números estão distorcidos por avaliarem indivíduos de 10 aos 19 anos, excluindo crianças mais jovens onde os transtornos psiquiátricos têm uma frequência ou diagnósticos mais baixos.
Kieling e colaboradores buscaram obter informações mais completas analisando uma faixa etária mais ampla e os dados para intervalos etários mais estreitos, a fim de conhecer tanto a trajetória global dos transtornos como a ocorrida com cada um dos transtornos separadamente.
Os dados obtidos com esta metodologia mostram uma prevalência bastante diversa desses transtornos, principalmente entre a infância e o início da adolescência. Dos 5 aos 9 anos, 6,8% das crianças tinham pelo menos um dos transtornos estudados. O número praticamente dobra e alcança 12,4% na faixa dos 10 aos 14 anos. Dos 15 aos 19 os números são próximos a 14% e a porcentagem se mantém estável nos anos subsequentes.
Da mesma forma varia a prevalência dos transtornos por faixa etária e o estudo mostra que eles podem ter trajetórias bem diferentes. Por exemplo, o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) começa cedo e dos 5 aos 9 anos 2,1% das crianças manifestam sua ocorrência. Atingem o pico de 2,9% entre 10 e 14 anos para se tornarem menos prevalentes depois. Já a depressão e a ansiedade aparecem em proporções baixas nas primeiras fases da vida e crescem de modo contínuo até o início da fase adulta. Outros como a deficiência intelectual e o autismo têm uma prevalência constante em todas as faixas etárias estudadas, enquanto o uso de álcool e drogas são mais tardios e se manifestam a partir da adolescência.
Além de estimar a prevalência, os autores calcularam o impacto causado por esses transtornos na vida das pessoas. Para isso, usaram uma métrica chamada de years lived with disability (YLD), ou anos vividos com incapacidade, que leva em conta a gravidade e o tempo em que o transtorno causou limitações. Em 2019, os transtornos, na população estudada, foram responsáveis por 31,1 milhões de YLD, o dobro do segundo colocado, que foram as doenças neurológicas.
O período que vai da infância até o início da idade adulta concentra um quarto do impacto total que os transtornos mentais impõem ao longo da vida.
O estudo mostra a relevância do tema e a necessidade de ações mais efetivas para enfrentá-lo. Justificam com diz Kieling que ” uma parte importante do orçamento da saúde deveria ser destinada à prevenção e ao tratamento precoce dos transtornos mentais. Isto evitaria prejuízos importantes mais tarde.”
Como sempre, na saúde, melhor prevenir, diagnosticar precocemente do que remediar.